"Doutor, quando o senhor vai voltar a trabalhar?" Essa é a pergunta que Raymond Garcia, de 33 anos, mais escuta dos moradores do município de Ponta de Pedras, no Pará. Ele trabalhou por dois anos em duas comunidades ribeirinhas da região -- Santana do Arari e Fortaleza. O acesso a elas é feito por barco, e a maioria das ocorrências no local são de diarreia, malária, doença de chagas e chikungunya. Sem médico cubanos, os moradores são penalizados com a falta de atendimento.
No Pará, segundo dados da Federação das Associações de Municípios do Estado (Famep), de 2013 a 2018, atuavam 542 médicos cubanos de um total de 700 do programa. Dos 144 municípios do estado, 59 eram exclusivamente atendidos por cubanos, assim como quatro Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs): Altamira, Guamá, Tocantins e Rio Tapajós. Segundo os últimos editais disponíveis no site do Mais Médicos, apenas 92 profissionais brasileiros constam como aprovados para atuar no Pará.
Os 16 municípios do arquipélago do Marajó aderiam ao programa Mais Médicos e tinham médicos cubanos atuando. Entre eles, o de Ponta de Pedras. No site do Mais Médicos aparecem quatro vagas autorizadas para médicos no município, mas não há informações sobre se o profissional está atuando ou não. Antes de 2018, era a Famepa que detinha esses dados; hoje nem a Secretaria de Estado de Saúde (Sespa) tem o controle da relação de municípios com e sem médicos. O Brasil de Fato entrou em contato com a secretaria pedindo dados sobre a disponibilidade de profissionais nos municípios paraenses e o órgão afirmou que as informações agora são concentradas no Ministério da Saúde, em Brasília (DF).
Na classificação do programa, Ponta de Pedras está entre as cidades consideradas de extrema pobreza. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, 31 mil pessoas moram no local e a taxa de mortalidade infantil média é de 17,24 para mil nascidos vivos. As internações em decorrência de diarreia são de 9,2 para cada mil habitantes.
Depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) fez uma série de declarações xenofóbicas contra os cubanos, chegando até a dizer que a atuação deles tinha por objetivo "formar núcleos de guerrilha no Brasil", o acordo entre Brasil e Cuba chegou ao fim. O Programa Mais Médicos foi criado em 2013 pela Medida Provisória n° 621, na gestão da presidenta Dilma Rousseff (PT), e regulamentado em outubro do mesmo ano pela Lei n° 12.871, após amplo debate público junto à sociedade e no Congresso Nacional.
O contrato, com vigência de três anos para cada um dos médicos, tinha a proposta de suprir a carência de profissionais nas periferias das grandes cidades e nos municípios do interior, como é o caso de Ponta de Pedras. Os médicos que atuam no programa, tanto os brasileiros quanto os estrangeiros, recebem remuneração mensal de cerca de R$ 11 mil, mais R$ 2.750 de auxílio-moradia. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) triangulava acordos entre Brasil e Cuba para a vinda de médicos do país para atuar em Unidades Básicas de Saúde (UBS), no setor de atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.
Diploma não reconhecido no Brasil
Apesar de Cuba ser um dos países do mundo que mais tem médicos por habitantes, o diploma de uma pessoa formada lá não tem validade no Brasil. Segundo dados da Opas, o país caribenho tinha em 2014 uma média de 7.519 médicos para cada mil habitantes. O número é quatro vezes maior do que o do Brasil: 1.852, segundo dados de 2013.
Uma das críticas ao programa feita pelas entidades de classe dos médicos brasileiros era quanto à desobrigação dos estrangeiros de se submeterem ao Revalida, a prova de revalidação do diploma do medicina exigida de médicos estrangeiros que queiram atuar no Brasil. Em 2017 uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o governo federal a dispensar a validação de diploma para os médicos que atuam no Mais Médicos.
Raymond Garcia é um dos cubanos que agora esperam uma posição do governo brasileiro sobre o Revalida. Ele se formou na Faculdade de Medicina Dr. Salvador Allende, em Havana, e trabalhava na Urgência e Emergência de um hospital em Cuba quando veio em uma missão médica ao Brasil. Garcia conta que desde o início do trabalho criou uma boa relação com seus pacientes e muitos perguntam até hoje quando ele retornará às atividades.
Garcia diz que o mais difícil é ver pessoas que um dia ele conseguiu ajudar lhe pedirem atendimento. "É doloroso ver as pessoas doentes e não poder ajudar. Se eu fizer isso é considerado crime, porque o meu diploma de médico não é aceito pelo governo brasileiro", lamenta.
Sem a validação do curso superior, restou ao médico o trabalho informal. Ele foi para as ruas vender coxinha para poder sustentar a família. “Tenho um filho que nasceu no Brasil que tem um ano e quatro meses e eu não tinha emprego. Fui vender lanche nas ruas, coxinha, durante seis meses. Tinha dia que ganhava 20 reais, 15 reais, e agora estou trabalhando de balconista em uma farmácia”, resume.
Menos médicos
Apesar da proposta de valorização dos médicos brasileiros, o que se vê no Pará é a falta de médicos de qualquer nacionalidade para atender pessoas que moram em comunidades remotas. Ponta de Pedras tinha quatro médicos e agora não tem nenhum. "O hospital municipal de Santana do Arari está deteriorado, está em processo de reforma há mais de um ano e até agora nada. Os postos de saúde em que nós trabalhávamos estão fechados. Depois que saímos entrou um médico brasileiro que pediu demissão porque as condições de trabalho eram muito ruins”, diz.
Em Chaves, no Marajó, a situação é a mesma. Adelino Barbosa, de 48 anos, mora no local desde que nasceu. Ele conta que o atendimento de saúde nunca tinha sido bom, mas que os médicos cubanos eram muito atenciosos. Barbosa fala que atualmente, além dos médicos, faltam também remédios no município. Segundo o Edital SGTES/MS nº 22, de 07 de dezembro de 2018, do Projeto Mais Médicos para o Brasil, uma vaga foi homologada para o município, mas não há informação sobre se o profissional está ou não atuando.
“Na verdade, médico especialista aqui nós não temos. Tem aprendiz. O atendimento médico está péssimo. A gente procura medicamento no posto e não tem. Se você estiver doente para tomar medicamento, eles dão a receita e tem que procurar a farmácia para comprar. Se você tiver o medicamento, você toma e fica bom, mas se não tiver, fica complicado. Na minha opinião, quando eles estavam aqui era um atendimento melhor”, diz.
Apesar de os dados referentes ao quantitativo de médicos no Pará não estar disponível para a população, ainda há profissionais dispostos a cuidar das pessoas em comunidades distantes do Brasil, como o Raymond Garcia. "É uma situação de saúde triste, porque não posso fazer nada. Sou médico e as pessoas estão morrendo de coisas simples que eu posso resolver, mas não posso fazer nada. É uma situação frustrante", finaliza Garcia, que não sabe se um dia poderá voltar a exercer medicina em solo brasileiro.
Edição: Cris Rodrigues