Três juristas e advogados ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que a Justiça, cujo papel é garantir a proteção dos direitos dos cidadãos, atua de forma ilegal ao prender e negar a liberdade de Paulo Lima, conhecido como Galo.
O entregador de aplicativos admitiu envolvimento no incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato, como forma de estimular o debate sobre a permanência em vias públicas de monumentos dedicados a figuras históricas do colonialismo.
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“O que estamos vendo faz parte do que chamamos de criminalização de movimentos sociais. A prisão, nesses casos, é uma forma de repressão da ideia por trás do movimento, para ‘dar o exemplo’ aos que pensam igual, e até como meio de tortura. Aos amigos, a lei, aos inimigos, a exceção”.
A afirmação é da advogada e pesquisadora Nathalia França, que coordena o Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado Exceção da PUC de São Paulo e é autora do livro Aspectos da Exceção no Direito Internacional.
Prisão arbitrária
As ilegalidades, conforme Nathalia, começaram quatro dias após o incêndio, quando Galo se apresentou espontaneamente à Polícia Civil e se ofereceu para colaborar com as investigações.
Mesmo assim, saiu de lá direto para a carceragem detido sob uma modalidade de prisão chamada de “temporária”, prevista para casos em que o investigado possa prejudicar o andamento do inquérito policial.
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“Nem o crime de dano, nem o de associação criminosa - delitos que a investigação policial entendeu terem sido cometidos por ele - têm pena máxima superior a quatro anos. Ele não tem antecedentes criminais e o crime não envolve violência. Mais claro impossível: Galo deve responder em liberdade”, assevera Nathalia.
“Nesse caso ele se dirigiu à polícia e disse que era o autor, mas a partir daí você tem a seguinte ideia: não cabe a prisão temporária. Acabou. Pois ele está se colocando à disposição e como autor do crime”, concorda o advogado Sérgio Graziano.
Resquício da ditadura
Com quase três décadas de experiência na advocacia e 25 anos atuando como professor universitário, Graziano afirma que a prisão temporária é um resquício autoritário da ditadura militar.
“A ideia é fazer com que você fique submetido a determinados caprichos da autoridade policial e judicial. Você cala vozes, tortura as pessoas. Não só as mentes, mas os corpos. E, assim, alimenta a ideia da punição e do poder de polícia”, afirma Graziano.
A irregularidade, na opinião dos especialistas, perpetuou-se quando a juíza de primeira instância Gabriela Bertoli, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), estendeu por mais cinco dias a detenção de Galo, na mesma modalidade de prisão.
Preso por não delatar
A defesa do ativista entrou com um pedido liminar de habeas corpus em uma instância superior, solicitando a soltura imediata dele. O desembargador Walter da Silva, da 14º Câmara do (TJ-SP), negou o recurso sob a justificativa de que Galo se recusou a delatar outros envolvidos na ação.
“Não dar informações sobre os demais participantes do protesto não consta do rol de motivos possíveis para se decretar essa modalidade de prisão, que sempre deve ser exceção”, observa Nathalia.
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A partir daí, os advogados de Galo subiram mais um degrau nas instâncias judiciais e levaram o pedido de habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), um dos órgãos máximos do Poder Judiciário, ao lado do Supremo Tribunal Federal (STF).
Descumprimento de decisão do STJ
A revogação da prisão foi determinada na quinta-feira (5) por Ribeiro Dantas, ministro do STJ. Mas a juíza Gabriela Bertoli se recusou a cumprir a decisão. Ela manteve Galo na carceragem até o dia seguinte, quando o enquadrou em um outra modalidade de prisão, a preventiva.
“Ao receber a revogação da prisão temporária, a juíza decretou a prisão preventiva. Ao meu ver, a real intenção dela é o descumprimento da decisão do STJ”, avalia o advogado criminalista Fernando Augusto Fernandes, que atuou em alguns dos casos de maior repercussão nacional, trata-se de abuso de autoridade.
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“Não é possível se ater à mera nomenclatura da prisão para se descumprir a ordem de soltura. Fosse um advogado a realizar esse tipo de descumprimento, nós estaríamos falando em ‘chicana’. Sendo uma autoridade, eu prefiro falar em abuso”, complementa.
Métodos da Lava Jato
Com atuação em vários processos no âmbito da operação Lava Jato, Fernandes afirma já ter testemunhado manobras como a conduzida pela juíza Gabriela Bertoli.
“Esse método de descumprimento da soltura foi amplamente utilizado pelo [ex-juiz da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba] Sérgio Moro quando decretava novas prisões antes da apreciação dos habeas corpus. Ele aperfeiçoou uma arbitrariedade que já era cometida anteriormente”, aponta.
Enquanto jurista, Fernandes afirma não ser seu papel defender práticas ilegais e prefere não fazer juízo de valor sobre o incêndio à estátua. Mesmo assim, concorda que o tratamento dado a galo pela Justiça paulista está baseado em critérios políticos, e não jurídicos.
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"A fundamentação disso tudo está de fato na criminalização dos movimentos sociais e do envolvimento no engajamento político, o que representa um resquício da falta de democratização do Poder Judiciário e da atuação política de determinados juízes que se utilizam da lei para impor uma forma de pensamento que não se compatibiliza com a Constituição de 1988”, finaliza.
Edição: Leandro Melito