A estátua do bandeirante Borba Gato, em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, agora vive cercada por grades e vigiada pela Guarda Civil Metropolitana. Mais uma vez, é o alvo de ações que defendem a derrubada de monumentos que exaltam personagens da escravização de povos afrodescendentes e indígenas, como é o caso de Manuel de Borba Gato, que fez fortuna, na segunda metade do século 18, ao caçar indígenas pelo sertões do País para escravizar. Em setembro de 2016, a estátua amanheceu manchada de tinta, num repúdio a sua figura, assim como o Monumento às Bandeiras, na Praça Armando Salles de Oliveira, no Ibirapuera.
Em outro lugares do mundo, o movimento é o mesmo. Em Richmond, na Virgínia, nos Estados Unidos, uma estátua de Cristóvão Colombo, apontado na história como o primeiro conquistador europeu a chegar à América, foi derrubada, incendiada e jogada em um lago. Na mesma cidade, a estátua de Jefferson Davis, militar americano que defendia a manutenção da escravidão nos EUA, também foi derrubada. Da mesma maneira, em Bristol, na Inglaterra, uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos e membro do Parlamento britânico no século 17, foi derrubada e jogada em um rio.
As ações são reflexo das manifestações iniciadas nos EUA que escancararam o racismo que levou George Floyd à morte sob o joelho de um policial. Segundo Suzane Jardim, historiadora e educadora em questões étnico-raciais, trata-se de uma discussão levantada sobre descolonialidade que existe pelo menos desde a década de 1970. O processo de libertação de muitos países do continente africanos passou pela destruição de símbolos escravocratas e colonializantes, explica a historiadora.
O processo de construção de imagem não se desassocia de modo nenhum do processo político de construção do Brasil e o questionamento dos símbolos questiona também todo esse processo.
De acordo com Jardim, a formação de uma identidade nacional passa por escolhas de heróis, símbolos, hinos, histórias. No Brasil, não foi diferente. O conjunto das escolhas tentou representar a raça brasileira “como o melhor dos três mundos: o amor da natureza do indígena, a força para trabalhar do negro e a inteligência do branco”, afirma Jardim.
Nesse sentido, “se começa exatamente a procurar quem foram as pessoas que lutaram de alguma forma para o Brasil ser Brasil. Se a lógica é que o negro só serve para trabalhar e o indígena só serve numa lógica idílica, o branco é o panorama da racionalidade de construção do país”. É assim que os monumentos de bandeirantes, tidos como a primeira “linha de sangue puro do nosso país”, se tornam alvos prioritários de ações de protesto contra o racismo estrutural.
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Memória
Emaranhado a isso, está o processo de embranquecimento da sociedade brasileira, com a vinda de imigrantes, a marginalização da população negra e a aniquilação dos povos originários. “Esse processo de construção de imagem não se desassocia de modo nenhum do processo político de construção do Brasil e o questionamento dos símbolos questiona também todo esse processo”, explica Jardim.
Nesse processo, a historiadora também enxerga o apagamento da memória negra e indígena. “A memória negra foi varrida, como a memória indígena foi varrida e ninguém questionou (...) A gente sabe que não tem uma estátua de Zeferina do Quilombo do Urubu, por exemplo.”
É por isso que hoje, diante das manifestações antirracistas, esses monumentos passam a ser questionados. “Passa a ser questionado o que é aquela tentativa de história, que história estavam tentando criar para o nosso país e quem foram os esquecidos. Todo esse movimento de questionamento de pensar em derrubar ou em ressignificar tem a ver com isso, é algo contínuo e que é fruto de todas as contradições que o colonialismo colocou pra gente até os dias de hoje”, explica Jardim, que vê como válido o questionamento.
Quanto maior for o nosso debate e a garantia desse direito à memória, melhor será nossa ação para qualificar os espaços públicos com essas histórias.
Jardim acredita que o questionamento é válido, mas afirma que é necessário mostrar que personagens como Borba Gato e Edward Colston existiram. O contrário tenderia a criar um futuro “onde se possa se esquecer que fomos racistas, que a nossa política e as nossas instituições exaltavam torturadores e genocidas”.
Este também é o alerta dado por Heloísa Starling, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais e coautora de “Brasil, uma biografia”. Segundo Starling, o movimento é legítimo e “correto”, mas é necessário evitar o risco de uma possível consequência: a de “reescrever ou apagar a história”. Para a docente, “quanto mais nós sabermos sobre o passado, mais forte será o tipo de ação que nós vamos construir para que não se repita. É mais importante construirmos uma ação política que detenha o conhecimento do que simplesmente destruir”.
É por esse caminho que Starling aponta para a necessidade de olhar e conhecer esse passado sem as emoções e os valores do presente, justamente para não apagar a história: “nós não podemos esconder também essa história”.
“Quanto maior for o nosso debate e a garantia desse direito à memória, melhor será nossa ação para qualificar os espaços públicos com essas histórias. Os gregos diziam que o esquecimento é pior do que a morte. Então quando você apaga a memória das populações originárias ou das populações afrodescendentes você está condenando a um destino pior do que a morte. Qual é a história que nós vamos contar e como nós vamos contar essa história?”, questiona Starling.
Edição: Rodrigo Chagas