A temperatura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid não subiu nem desceu nesta quarta-feira (4). O depoimento do tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor de Roberto Ferreira Dias, que era diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, confirmou a tese de alguns senadores: o governo federal deu espaço para pessoas que não tinham vacinas, enquanto dificultou o acesso ao Instituto Butantan e à Pfizer.
Tanto os senadores da oposição quanto da base governista questionam porquê e como figuras como Luiz Paulo Dominguetti e Cristiano Carvalho, que se apresentaram como representantes da Davati Medical Supply, tiveram espaço entre os servidores do Ministério da Saúde, mesmo carregando contradições.
“Não houve nenhuma facilidade para eles [para a Pfizer]. Houve uma facilidade para o Dominguetti, que o senhor Blanco nunca tinha visto. Houve uma facilidade de ir para um restaurante à noite e no dia seguinte estava aberto o Ministério da Saúde para ele", , afirmou o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).
"Coronel Blanco, nós estamos estarrecidos com a facilidade com que pessoas desqualificadas adentraram o Ministério, desqualificadas em todos os sentidos. E foram levados por pessoas do Ministério, não caíram do céu”, argumetou Aziz.
Segundo Blanco, as conversas com Dominguetti começaram no dia 9 de fevereiro deste ano, com a oferta de 400 milhões de doses da vacina do laboratório britânico AstraZeneca.
Na ocasião, Dominguetti informou que já havia uma aproximação com o Ministério da Saúde, por meio do reverendo Amilton Gomes de Paula, presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), mas que queria ajuda de Blanco para avançar nas tratativas.
No fim do mês, o coronel Marcelo Blanco levou Dominguetti até Roberto Dias. O encontro teria acontecido no restaurante Vasto, no Brasília Shopping, no dia 25 de fevereiro, onde Dias teria feito um pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina a Dominguetti.
“Não foi um encontro casual, eu sabia que o Roberto Dias estava no Vasto. Posso ter sido inconveniente? Posso ter sido. Mas não vi mal nenhum”, afirmou Blanco. Ele afirma, no entanto, que não presenciou nenhum pedido de propina.
“Ele [Dominguetti] me pediu a possibilidade de ter uma agenda oficial. Quando eu tomei conhecimento que Roberto estaria no Vasto, eu sugeri a ele: ‘Eu te apresento, você faça o pedido da sua agenda’, e assim foi feito.” No dia seguinte, Dominguetti conseguiu uma reunião oficial no Ministério da Saúde, com Roberto Dias.
No dia 25 de fevereiro, porém, Dias já não tinha nenhuma autoridade sobre a aquisição de vacinas, atividade que já estava concentrada nas mãos de Elcio Franco, desde 29 de janeiro deste ano, quando foi publicado um ofício determinando a mudança.
Para Omar Aziz (PSD-AM), portanto, não havia motivos para Marcelo Blanco levar Dominguetti a Roberto Dias. O coronel afirmou, entretanto, que não sabia que a aquisição de imunizantes estava restrita à Secretaria Executiva da pasta, mesmo com ofício enviado às secretarias dando ciência da concentração das ações.
Apesar de ter sido o responsável pelo acesso de Dominguetti ao diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Blanco também nega ter construído essa ponte.
“Nunca ajudei na elaboração de documentação, simplesmente orientei [Dominguetti] a utilizar os meios estatais. Da mesma forma, nunca acompanhei representante de qualquer empresa”, depôs Blanco.
Em 30 dias, o coronel e Dominguetti trocaram 108 ligações, sendo 64 de iniciativa do coronel Blanco, como informou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Segundo Blanco, todas as conversas se restringiram a tratar do mercado privado.
Mercado privado de vacinas
O único objetivo de Marcelo Blanco, ao se aproximar e manter contato com Dominguetti, em suas palavras, foi analisar a possibilidade de oferecer vacinas a grupos privados. “Projetava nele [Dominguetti] um parceiro comercial no privado”, afirmou Blanco.
Ainda assim, as conversas se deram antes mesmo de existir um projeto de lei que dispusesse sobre a aquisição de imunizantes pelo setor privado.
“Nessas datas [primeira e segunda semanas de fevereiro], não havia sequer o debate da lei. A primeira reunião sobre um projeto de lei acerca de vacinas para o mercado privado foi em 21 de fevereiro. O projeto de lei só foi protocolado [na Câmara dos Deputados] no dia 23 de fevereiro”, afirmou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI.
A proposta em questão foi o Projeto de Lei de Conversão n. 1/2021, apresentado pelo Deputado Pedro Westphalen (PP-RS), que foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no dia 10 de março. Lembrando que o coronel foi exonerado de sua função comissionada no Ministério da Saúde, em 15 de janeiro, e sua empresa, Valorem Consultoria em Gestão Empresarial, foi aberta em 22 de fevereiro, registrada como da área de educação financeira.
Depois, em março, após o presidente sancionar a legislação sobre aquisição de vacinas por parte do setor privado, a atuação da empresa mudou para representação de medicamentos. A mudança também ocorreu após o encontro no Brasília Shopping.
Mesmo sem uma lei permitindo a compra de vacinas pelo setor privado, aparentemente, Blanco não era o único interessado nesse mercado.
Aos senadores, ele identificou José Ricardo Santana, que também trabalhava no Departamento de Logística do Ministério da Saúde, como a quarta pessoa que estava no encontro do restaurante Vasto, no Brasília Shopping, no dia 25 de fevereiro. Depois que deixou a pasta, Santana também se tornou empresário.
Randolfe Rodrigues também citou o general Roberto Severo Ramos, que chefiava a Secretaria Executiva da Secretaria-Geral da Presidência (SGPR), hoje consultor da empresa VTCLog, que presta serviços ao Ministério da Saúde para armazenar e distribuir medicamentos, inclusive vacinas.
“Nós temos três personagens: Severo sai da Secretaria-Geral e vira empresário, da VTCLog; o senhor sai e vira empresário [Valorem Consultoria em Gestão Empresarial], e agora José Ricardo Santana”, afirma Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Depois que os negócios de Dominguetti não andaram para frente dentro do Ministério da Saúde, Blanco afirmou que deixou de conversar com o representante da Davati Medical Supply.
Sem vacinas
O reverendo Amilton Gomes de Paula afirmou, nesta terça-feira (4), que conversou com Herman Cardenas, dono da Davati Medical Supply, sobre a proposta de 400 milhões de doses. Ele disse que, na ocasião, o empresário garantiu que tinha as doses. Em entrevista ao Fantástico, no entanto, Cárdenas, disse apenas que atuava como um facilitador e que não tinha as vacinas.
Em outra contradição, Dominghetti afirmou em seu depoimento à CPI que não tem nenhuma relação contratual com a Davati. “Havia um acordo de cavalheiros, até porque eu sou funcionário público e não posso assinar contrato”, afirmou o policial militar.
O laboratório britânico AstraZeneca também informou que todas as negociações são feitas diretamente “por meio de acordos firmados com governos e organizações multilaterais ao redor do mundo, incluindo da Covax Facility, não sendo possível disponibilizar vacinas para o mercado privado ou para governos municipais e estaduais no Brasil”.
Também negou que tenha qualquer relação contratual com a empresa Davati Medical Supply, sediada no Texas. O único contrato da AstraZeneca estabelecido com o Brasil foi feito por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), nos dias 8 e 9 de setembro de 2020.
Aos senadores, Marcelo Blanco afirmou que não procurou saber quem eram Luiz Paulo Dominguetti e Cristiano Carvalho antes de dar seguimento às aproximações.
Edição: Leandro Melito