O incêndio que atingiu um galpão da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, no início da noite de quinta-feira (29), ocorreu pouco mais de um ano depois da demissão de Regina Duarte do comando da Secretaria Especial de Cultura.
Em maio de 2020, ao lado da atriz, o presidente Jair Bolsonaro comunicou sua saída da secretaria e anunciou que ela passaria a trabalhar na Cinemateca Brasileira para "ficar mais próxima da família", segundo o presidente.
"Ir para Cinemateca, do lado do teu apartamento, ali em São Paulo, se você vai ser feliz e produzir muito mais, eu fico feliz com isso. Chateado porque você se afasta um pouco do convívio nosso em Brasília", afirmou Bolsonaro, na ocasião.
:: O que se perde com o abandono da Cinemateca Brasileira? ::
Fora da Secretaria Especial de Cultura, da qual só veio a ser exonerada em 10 de junho por meio de um decreto presidencial - 20 dias após o vídeo gravado ao lado do presidente em que anunciava sua saída - Regina Duarte nunca foi nomeada para o cargo público prometido pelo presidente.
O primeiro entrave para a nomeação foi que o cargo deixou de existir em 2018, quando o ex-presidente Michel Temer (MDB), concedeu a gestão da TV Escola para a organização social Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. Em um aditivo do contrato, esta também passou a ser responsável pela gestão da Cinemateca, administrando o orçamento vindo do governo federal.
O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub encerrou o contrato com a Roquette Pinto para gerenciar a TV Escola, em dezembro do ano passado, e, assim a gestão da Cinemateca também foi invalidada. Até o momento, entretanto, o governo federal também não tomou para si a administração da instituição, deixando a Cinemateca em situação de abandono.
O vínculo iria até 2021, mas segundo o Ministério Público Federal (MPF), a decisão foi tomada pelo ex-ministro de Bolsonaro "de forma unilateral e sem motivo juridicamente admissível".
A situação levou o MPF a entrar com uma ação civil pública em que aponta "abandono intencional" por parte da União e prevê a aplicação do orçamento previsto para este ano, no valor de R$ 12,2 milhões, de forma imediata para garantir a preservação do espaço.
Autor da petição, o procurador da República Gustavo Torres Soares afirma que é “extremamente provável que o único motivo do Ministério da Educação para contrariar os próprios órgãos técnicos federais seria a resistência ideológica, à custa da deterioração do material custodiado pela Cinemateca e do risco crescente de sua destruição”.
Com o contrato derrubado, a gestão da Cinemateca também foi invalidada. A Roquette Pinto, no entanto, continuou a custear a manutenção da instituição. Em junho, a presidência da organização enviou uma carta para o Ministério da Educação com a cobrança de uma dívida de R$ 13 milhões.
Sem a atuação do governo federal para manter a Cinemateca, a ação do MPF também pede que o contrato com a Roquette Pinto seja renovado para o ano de 2020 de forma emergencial. Nesse período, a União está impedida de suspender a parceria, a não ser que tenha autorização da Justiça para tal.
O procurador também requer a permanência do quadro técnico que já compõe a instituição, bem como a reestruturação do Conselho Consultivo da Cinemateca.
Mobilização
"A possibilidade de autocombustão das películas em nitrato de celulose, e o consequente risco de incêndio frequentemente recebem mais atenção da mídia e do público. A instituição enfrentou quatro incêndios em seus 74 anos, sendo o último em 2016, com a destruição de cerca de 500 obras. O risco de um novo incêndio é real", alertaram os trabalhadores da instituição em abril deste ano.
O acervo é constituído por 250 mil rolos de filmes, alguns compostos por nitrato de celulose, que podem entrar em autocombustão caso não sejam mantidas as condições de refrigeração.]
Esse alerta vem sendo feito pelos trabalhadores da instituição desde 2020, mas nenhuma medida foi tomada pela Secretaria de Cultura do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
“Não há corpo técnico contratado, o acervo segue desacompanhado e não há qualquer informação sobre suas condições. Por esse motivo, lançamos um alerta acerca dos riscos que correm o acervo, os equipamentos, as bases de dados e a edificação da instituição”, diz a carta endereçada ao atual secretário especial de Cultura, Mario Frias. Não houve resposta.
Integrantes do movimento S.O.S Cinemateca também foram à manifestação da Avenida Paulista no último sábado (24) para alertar sobre os riscos, cada vez mais iminentes, de incêndio.
2020
Funcionários abraçam edifício sede da Cinemateca Brasileira em São Paulo em defesa da instituição federal de cinema e acervo / Trabalhadores da cinemateca/Projeções por @fluxus_
A situação do principal órgão de preservação da memória audiovisual brasileira gerou mobilizações pela sua preservação, na última semana antes do fechamento, em frente à sede da Cinemateca Brasileira, na Vila Mariana em São Paulo (SP).
Os movimentos SOS Cinemateca, criado pela Associação Paulista de Cineastas (APACI), a Cinemateca Acesa: Frente Ampla Cinemateca Viva e Mariana em Movimento realizaram uma manifestação na capital paulista com um abraço simbólico no edifício-sede da instituição federal na zona sul da capital paulista.
A mobilização também foi acompanhada de um manifesto em vídeo com a participação de artistas ligados ao audiovisual que pedem a preservação do espaço. Antonio Pitanga, Bárbara Paz, Alessandra Negrini, Marina Person, Fernando Meirelles, João Miguel, Marcelo Machado, Tata Amaral e Fernando Alves Pinto estão entre os artistas que participam do manifesto. Assista:
Outro lado
Em nota enviada à imprensa na noite desta quinta-feira (29), a Secretaria Especial de Cultura diz que "lamenta profundamente e acompanha de perto o incêndio que atinge um galpão da Cinemateca Brasileira, em São Paulo (SP)". A secretaria afirma ainda que "todo o sistema de climatização do espaço passou por manutenção há cerca de um mês".
"A Secretaria já solicitou apoio à Polícia Federal para investigação das causas do incêndio e só após o seu controle total pelo Corpo de Bombeiros que atua no local poderá determinar o impacto e as ações necessárias para uma eventual recuperação do acervo e, também, do espaço físico. Por fim, o governo federal, por meio da secretaria, reafirma o seu compromisso com o espaço e com a manutenção de sua história", diz o texto.
Edição: Leandro Melito