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Artigo | CPI da Pandemia desnuda política externa negacionista

Inicialmente não aderindo ao projeto, o Brasil recebeu propostas da OMS para adquirir 86 milhões de doses

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Apesar das inúmeras críticas e sabotagens feitas pelo governo federal contra a Coronavac, parte considerável da população brasileira vacinada recebeu essa vacina - Breno Esaki/Agência Saúde DF

Ela chegou ao extremo de causar mais de meio milhão de mortes. A pandemia de covid-19 devastou pessoas e famílias e ainda se espalha e se estende pelo Brasil. Objetivando investigar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia, a CPI da Pandemia já contou com depoimentos do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo e do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Focando-se na relação entre a CPI e a PEB, o depoimento do ex-chanceler que deixou o governo em março de 2021, é extremamente esclarecedor.

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Havendo ele notoriamente mobilizado o Itamaraty para garantir o fornecimento de cloroquina ao Brasil, dedicando-se muito mais a obter esse medicamento inócuo do que para a garantia de vacinas e medicamentos, Ernesto Araújo, declarou que o Ministério das Relações Exteriores seguiu as diretrizes internacionais do Ministério da Saúde durante a pandemia – mas os fatos põem em xeque essa afirmação.

De forma distinta, o envolvimento do ex-chanceler na polêmica do embaixador chinês com Eduardo Bolsonaro, simboliza as distensões ideológicas do governo brasileiro com a diplomacia. Em seu depoimento, Araújo ainda afirmou: "Não há nenhuma indicação que em nossa política externa tenha sido responsável pelos atrasos dos insumos em janeiro, quando eu estava no cargo, tenho os elementos para afirmar (...) A minha diplomacia, tenho certeza, foi uma boa diplomacia".

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A China é a principal responsável pela produção de IFA, matéria prima básica para a produção de vacinas / Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Lembrando que a China é a principal responsável pela produção de IFA, matéria prima básica para a produção de vacinas e elemento essencial para a produção tanto da vacina Coronavac quanto da AstraZeneca/Oxford no Brasil. O atraso no recebimento de IFA é potencial impeditivo da continuidade dos planos de vacinação no Brasil. Segundo especialistas, a alta demanda e a falta de articulação do Ministério da Saúde são os causadores da atual situação de escassez do insumo.

A ação inepta do Brasil é especialmente exemplificada em relação ao consórcio Covax Facility, criado pela OMS. Inicialmente não aderindo ao projeto, o Brasil recebeu propostas da OMS para adquirir 86 milhões de doses, suficientes para assegurar 20% da população brasileira. Com a hesitação e a recusa inicial, a decisão final decidiu pela compra de metade das doses estipuladas pela OMS, valor mínimo requerido pelo consórcio. Com a escassez das doses no mundo, o Brasil tentou tardiamente ampliar as compras, mas com a OMS estabeleceu que os governos que queiram fazer novas compras devem pagar integralmente o valor das doses antes de receber qualquer vacina, enquanto por outros mecanismos os pagamentos usualmente são feitos de acordo com a liberação das doses. Isso mostra claramente que os atuais obstáculos para a aquisição e suprimento das vacinas podem ser atribuídos à inoperância e ausência de planejamento a longo prazo do governo.

Outra situação contraditória em relação à compra de imunizantes se apresenta no caso da Pfizer. Araújo afirmou que tomou conhecimento do contato da empresa, mas que não tratou do assunto pois o Ministério da Saúde era responsável pela definição estratégica e por acreditar que o Presidente da República já tinha conhecimento da carta enviada pela Pfizer..

Covaxin e a Variante Delta

A suspensão da aquisição da vacina Covaxin por parte do Ministério da Saúde após as acusações de corrupção na compra do imunizante feitas por Luis Ricardo Miranda em depoimento à CPI da Covid repercutiram na mídia indiana. Embora nenhuma declaração oficial tenha sido feita até o momento pelo primeiro-ministro Narendra Modi, o Congresso indiano pediu no dia 2 de julho que seu governo conduza um inquérito sobre o caso para explicar as alegações acerca do aumento de preço das doses da Covaxin.

Segundo a porta-voz oficial do Congresso Nacional Indiano, Supriya Shrinate, o imunizante da Bharat Biotech foi desenvolvido em parceria com o Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR), um órgão público, segundo ela isso implicaria na utilização do dinheiro do contribuinte para o desenvolvimento das pesquisas e, portanto, as acusações deveriam ser enviadas para o Escritório de Investigação de Fraudes Graves do governo da Índia para serem apuradas.

O laboratório da Bharat Biotech negou haver qualquer esquema de corrupção envolvendo a compra da Covaxin e afirmou que os preços ofertados para o mercado internacional são transparentes e diferem dos valores oferecidos para o governo da Índia.

Dias após a decisão do Ministro Queiroga de suspender a compra dos imunizantes, o laboratório indiano publicou os resultados da Fase-3 de testagem da vacina. Segundo o jornal The Hindu, a fabricante afirmou ter conseguido uma eficácia de 77,8% em seu produto na aplicação da primeira dose, nível superior ao da AstraZeneca, de 70,4%. Além disso, segundo o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, a Covaxin possui capacidade de neutralizar variantes da Covid-19, como a variante Alpha e a Delta, que segundo a OMS, podem se tornar a forma mais comum do vírus e são responsáveis pelo aumento do número de novos casos na Europa e nos Estados Unidos.

OMS, China e as vacinas

Para além das já conhecidas Delta, Gama e outras, foram identificadas recentemente possíveis novas variantes brasileiras do Coronavírus. Após o presidente Jair Bolsonaro insistir em ignorar os dados alarmantes da atual pandemia, ficou acordado que a Copa América seria realizada em solo brasileiro, já que outros países latino-americanos rejeitaram sediar o campeonato. Com o evento, surgiu no país uma nova variante da Covid-19 (a B.1.621), originada na Colômbia e detectada no Brasil pela primeira vez no Mato Grosso.

Embora ainda seja pouco conhecida, esta se apresenta com alto potencial de mutação e transmissão, sendo necessário observar o seu desenvolvimento no Brasil e continuar adotando medidas preventivas. Em discurso recente, o Ministro Marcelo Queiroga defendeu a vacinação como importante meio para conter o número de infectados pelo coronavírus e o avanço de novas cepas.

Com a chegada do “passaporte de vacinação”, que vem inclusive sendo projetado pelo Ministério do Turismo no Brasil, protestos contra essa nova proposta têm surgido ao redor do mundo. Dentre os argumentos para esse descontentamento estão os fatos de que a medida se choca contra as liberdades civis e impulsiona as discriminações, visto que o acesso aos lugares estaria condicionado pelo passaporte digital, o qual não está igualmente à disposição de todos.

A OMS, sob a direção de Tedros Adhanom, propôs a continuidade das investigações sobre a origem da Covid-19 na China e cobrou também mais transparência do governo chinês, a fim de que forneça todos os dados necessários e colabore com o andamento desses estudos. Entretanto, a China se mantém firme em não permitir inspeções in situ no local apontado como possível origem do vírus.

Com sua diplomacia das vacinas, a China se destaca no cenário da saúde global e, apesar das inúmeras críticas e sabotagens feitas pelo governo federal contra a Coronavac, parte considerável da população brasileira vacinada recebeu essa vacina, graças à paradiplomacia e à cooperação entre Beijing e o Estado de São Paulo, por meio do Instituto Butantan que, à revelia do governo federal, avança também na produção da vacina Butanvac.

Registrando mais de 540 mil óbitos, o Brasil continua a ocupar posições de destaque nos rankings internacionais relacionados à Covid-19; sendo o terceiro país com o maior número de infectados e o segundo com o maior número de mortos - ficando atrás apenas dos EUA.

Hoje, depois do chefe do executivo tanto dificultar a aquisição de vacinas, o Brasil mantém contratos para a obtenção das vacinas: AstraZeneca, CoronaVac, Pfizer, Janssen e Sputnik. Embora a vacinação tenha avançado, somente cerca de 16% da população encontra-se completamente vacinada e, conforme apontou Jarbas Barbosa (vice-diretor-geral da OPAS), a pandemia ainda é uma situação emergencial de saúde pública, não devendo o progresso da imunização ser confundido com o controle da doença.

 

*Ana Paula Fonseca Teixeira, Letícia de A. L. Soares, Paulo Del Bianco e Gilberto M. A. Rodrigues são pesquisadores do Observatório de Política Externa Brasileira, da Universidade Federal do ABC (UFABC).

**O OPEB (Observatório de Política Externa Brasileira) é um núcleo de professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC que analisa de forma crítica a nova inserção internacional brasileira, a partir de 2019. Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo