Patrícia tinha apenas 3 anos quando esteve na cela feminina da carceragem do DOI-Codi [centro de repressão do Exército] paulistano da rua Tutoia, no bairro do Paraíso.
A criança, diferentemente das mulheres que ali estavam, não foi vítima das torturas denunciadas pelos presos políticos que eram encarcerados no lugar. Ela foi levada ao local pela mãe e pelo pai: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do centro de detenção, tortura e morte da ditadura militar brasileira instaurada em 1964.
Segundo Ustra, a visita da filha era um “gesto humanitário” para com os presos políticos, ideia sua e da esposa, Joseíta Ustra. A passagem foi narrada na obra escrita pelo próprio coronel, livro que o atual presidente Jair Bolsonaro disse estar na sua cabeceira em 2018.
Já para os presos políticos, a presença de uma criança junto a pessoas que denunciaram torturas em paus de arara e cadeiras elétricas “era mais uma terrível e macabra forma de tortura aplicada pelo então major Ustra às suas vítimas”, escreveu em artigo o jornalista Moacyr Oliveira Filho.
Quase 50 anos após a pequena Patrícia ter visitado o centro de tortura comandado pelo pai, a Agência Pública, com a agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação Fiquem Sabendo, revela que a filha de Ustra continua recebendo benefícios da atuação do pai no Estado brasileiro: uma pensão mensal e vitalícia de R$ 15.307,90; sua irmã, Renata, recebe o mesmo valor mensalmente.
E mais: incluindo o pagamento às duas filhas do ex-coronel, o benefício é concedido ao todo a 73 mulheres, viúvas ou filhas de 47 falecidos que foram acusados de crimes na ditadura pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Somente em fevereiro de 2021, o governo brasileiro pagou R$ 1.264.131,79 ao grupo de herdeiras desses militares, considerando os valores de remuneração básica bruta.
Há ainda outros dois casos de pensões que não constam na base de fevereiro, mas estão presentes em outros meses: uma paga até janeiro de 2021, no valor de R$ 30.508,03; e outra paga até julho de 2020, no valor de R$ 31.146,60.
O número final pode ser ainda maior, já que a lista da CNV apresenta nomes comuns sem informações de identificação, como registro ou CPF, o que impossibilita que se descartem homônimos.
A reportagem checou cada um dos casos que apresentaram correspondência entre a lista da CNV e a base de pensões, incluindo somente os nomes passíveis de algum tipo de confirmação, como data do óbito coincidente com o início do benefício ou informações sobre familiares dos militares disponíveis na internet.
Governo Bolsonaro atrasou para revelar pagamento de pensões de militares
O pagamento de pensões a viúvas e filhas solteiras de militares sempre foi um segredo mantido pelo governo federal. Em 2018, a Pública tentou acessar esses dados, assim como outros veículos de jornalismo, mas teve os pedidos de acesso à informação negados pelo Ministério da Defesa.
A justificativa era que a publicação desses dados feria o sigilo pessoal. Na época, as Forças Armadas se limitaram a informar que havia cerca de 110 mil filhas de militares que recebiam pensões vitalícias.
Em janeiro de 2020, o Fiquem Sabendo conseguiu, após uma disputa judicial de cerca de três anos, uma base parcial de pagamentos a servidores inativos do governo federal. Em novembro de 2019, todos esses pagamentos passaram dos R$ 2,4 bilhões. A lista, contudo, era incompleta, pois só possuía dados de militares de ex-territórios, como o antigo estado da Guanabara.
Na época, a Pública cruzou a base de pensionistas com a lista de 377 pessoas acusadas de crimes cometidos durante a ditadura, feita pela CNV.
A reportagem encontrou quatro militares falecidos acusados de violações de direitos humanos no regime militar e que deixaram pensões vitalícias às suas viúvas. É o caso de Cecil de Macedo Borer, ex-diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara, responsabilizado na CNV pela morte do mecânico José de Souza em abril de 1964.
Agora, pela primeira vez na história, o governo federal divulgou a lista completa de todas as pensionistas de militares. A publicação é um cumprimento atrasado de decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que acatou uma denúncia da Fiquem Sabendo sobre a falta de transparência de pensões. Segundo o prazo inicial do TCU, o governo deveria ter divulgado os dados em janeiro de 2020.
As herdeiras do DOI-Codi, símbolo de tortura da ditadura
Um dos símbolos da tortura na ditadura militar é a sigla DOI-Codi. O órgão, que foi instituído em 1970, a partir da Operação Bandeirante (Oban), ramificou-se por diversos estados brasileiros e só foi extinto no final do governo do general João Batista Figueiredo (1979-1985).
Nas várias unidades espalhadas pelo país, denúncias de torturas e assassinatos eram recorrentes: foi no DOI-Codi de São Paulo que ocorreu a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975; era lá que atuava o coronel Brilhante Ustra, citado no início desta reportagem.
Entre os 47 militares apontados pela CNV que deixaram pensão para familiares até hoje, dez atuaram no DOI-Codi, vários deles em cargos de comando. Ao todo, apenas em fevereiro de 2021 o Estado brasileiro gastou R$ 267.429,30 com o pagamento das benesses ligadas a torturadores do DOI-Codi apontados pela CNV.
Um deles é o capitão Benoni de Arruda Albernaz, que atuou no DOI-Codi do II Exército, em São Paulo. Segundo a CNV, ele “teve participação em casos de tortura, execução, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver”. Sua viúva, Selma Albernaz, recebeu R$ 12.417,29 em fevereiro de 2021, enquanto sua filha, Soraya Albernaz, recebeu R$ 3.275,79.
O capitão Benoni Albernaz era o chefe da equipe de interrogatório preliminar da Oban – precursora do DOI-Codi – à época da prisão da ex-presidente Dilma Rousseff, em 1970.
Então militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), Dilma teve um dente arrancado por socos do militar, durante sessão de tortura. Albernaz foi apontado pelo ex-marido da presidente, Carlos Araújo, como “o torturador mais famoso da Oban naquela época”, segundo reportagem de O Globo. Ele morreu em 1992 em São Paulo.
Na mesma época em que as denúncias apontavam o capitão Benoni à frente das sessões de tortura na capital paulista, o tenente Ailton Joaquim o fazia no Rio de Janeiro. Considerado “um dos mais violentos torturadores do DOI-CODI”, o militar chegou a ministrar uma aula prática de tortura na Vila Militar, em outubro de 1969, para uma plateia de sargentos e oficiais.
Acusado de “prática de tortura, execução e ocultação de cadáver” e envolvido na prática de contrabando quando serviu na Polícia do Exército do Rio de Janeiro, ele morreu em 2007 e deixou uma pensão vitalícia para sua viúva, Deusinere Joaquim, que recebeu R$ 25.452,45 em fevereiro de 2021.
Além dos dois, há pelo menos outros sete militares com atuação em unidades do DOI-Codi em São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro na lista de instituidores de pensões militares.
Na capital paulista, além de Brilhante Ustra e Benoni Albernaz, atuou o capitão Atilla Carmelo, conhecido como “Dr. Jorge”, chefe da Equipe C de Interrogatório em 1972, que deixou pensão para sua viúva no valor de R$ 28.703,65; é também o caso de Roberto Artoni, que chefiou equipe de investigações da unidade entre 1971 e 1976, deixando uma benesse de R$ 20.916,48 para sua viúva.
Já o coronel Luiz Arthur de Carvalho atuou no DOI-Codi da capital baiana, onde também teve participação na morte de Carlos Lamarca e foi superintendente regional da Polícia Federal. Sua viúva recebeu R$ 21.413,37 em fevereiro de 2021.
No DOI-Codi carioca, além de Ailton Joaquim, outros quatro militares apontados pela CNV que atuaram na unidade deixaram pensões: Adyr Fiuza de Castro, comandante do órgão entre 1972 e 1974, deixou o benefício para duas filhas, cada uma delas recebendo R$ 15.074,55; Francisco Moacyr Meyer Fontenelle, acusado de tortura pelo jornalista Marcos de Castro e envolvido na morte de Mário Alves, deixou pensão de R$ 33.021,30 para sua viúva; Francisco Demiurgo Santos Cardoso, comandante entre 1971 e 1972, um dos apontados pelo Ministério Público Federal (MPF) como responsável pelo sequestro, tortura e execução de Mário Alves, tem quatro filhas que recebem R$ 9.653,23 cada uma; e Jurandyr Ochsendorf e Souza, que também atuou na “Casa da Morte”, em Petrópolis (RJ), tem viúva e filha pensionistas que recebem R$ 19.043,79 e R$ 3.807,36, respectivamente.
Parentes de militares que atuaram no homicídio de Rubens Paiva recebem pensão em 2021
Dois dos militares que atuaram no DOI-Codi, Francisco Demiurgo e Jurandyr Ochsendorf, também estão envolvidos em uma das violações mais emblemáticas da dituradura: a prisão e o assassinato do engenheiro e parlamentar Rubens Paiva, em 1971.
Paiva, que iniciou sua vida política no movimento estudantil, foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962, traçando uma trajetória em prol da democracia.
Na madrugada do dia 1o de abril de 1964, após o golpe militar do dia anterior, Paiva chegou a discursar na Rádio Nacional em defesa do presidente João Goulart e em oposição ao regime. Após o discurso, o deputado teve o seu mandato cassado e se exilou com a família fora do país.
De volta ao Brasil um ano depois, manteve sua atuação política. Em 1971, a casa de sua família foi invadida por seis militares e Paiva foi preso e levado ao DOI-Codi, onde foi torturado até a morte.
Durante anos, as circunstâncias da morte e o paradeiro do corpo do ex-deputado eram incógnitas. Em 2014, o coronel reformado Paulo Malhães, um dos seis agentes da repressão que participaram da prisão e tortura de Paiva, contou em seu depoimento à CVN que Paiva teve seu corpo jogado em um rio de Itaipava, na região serrana do Rio de Janeiro.
No mesmo período, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ) entrou com denúncia contra cinco militares que participaram da ação. O processo foi o primeiro caso de homicídio no Judiciário brasileiro contra militares por crimes cometidos na ditadura.
Segundo reportagem do G1 publicada em 2014, o ex-comandante do DOI-Codi general José Antônio Nogueira Belham foi denunciado por homicídio triplamente qualificado, enquanto o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos e os irmãos Jurandyr e Jacy Ochsendorf e Souza foram acusados de ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa armada.
O processo segue travado na Justiça desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a ação contra os militares por entender que o julgamento violava a Lei da Anistia – que concedeu perdão aos militares que cometeram abusos em nome do Estado durante o regime.
Outro militar que participou da prisão, tortura e morte do deputado foi Rubens Paim Sampaio. Segundo a CNV, Sampaio foi oficial de gabinete do ministro do Exército e exerceu a função de adjunto do Centro de Informações do Exército (CIE), tendo atuado como torturador na Casa da Morte sob o codinome de “doutor Teixeira”.
Sampaio também deixou uma pensão vitalícia para a sua esposa, Jeane, e as filhas Renata, Ana Luiza e Ana Paula. Desde 2017 Jeane recebe R$ 16.452,06 e as filhas R$ 3.290,41 cada uma. Juntas, a pensão das quatro custa R$ 26.323,29 aos cofres públicos.
Do outro lado, a família de Rubens Paiva continua esperando a responsabilização do Estado e de seus agentes. A viúva do deputado, Eunice Paiva, morreu aos 89 anos em 2018, sem ver essa vítoria. Já os cinco filhos do casal – Marcelo, Vera, Ana Lúcia, Maria Eliana e Maria Beatriz Paiva – ainda relembram a brutalidade com que o pai foi tirado deles.
Alto escalão militar na ditadura garante renda de herdeiras até hoje
Rotinas de tortura, estupro e humilhação fizeram parte das denúncias do que ficou conhecido como a Casa da Morte, centro de detenção clandestino montado pela ditadura em Petrópolis, na região serrana do Rio, na década de 1970. O nome não veio ao acaso: ao menos 22 pessoas teriam morrido após serem levadas para o local, segundo denúncias levadas à CNV.
No topo da hierarquia que comandava a Casa da Morte estaria o coronel Cyro Guedes Etchegoyen, chefe da seção de contrainformações do CIE de 1971 a 1974. Foi o coronel Paulo Malhães, ex-agente do CIE, que apontou a participação de Etchegoyen na casa, em depoimento à CNV.
Em entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), o coronel reconheceu que houve torturas, mas afirmou que “o governo nunca estimulou nem um milímetro” e que os responsáveis foram punidos.
A Pública encontrou uma pensão de R$ 30.035,55 paga à viúva de Etchegoyen, Mary Alves da Cunha Etchegoyen. O coronel morreu em 2012.
A família Etchegoyen tem ligações com o Estado brasileiro muito além de Cyro. Alcides, seu pai, esteve à frente da polícia do Rio de Janeiro durante o Estado Novo. O irmão Leo Guedes chefiou a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul no início da ditadura de 1964.
E o sobrinho de Cyro, Sérgio Etchegoyen, foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo de Michel Temer – ele chegou a afirmar que as investigações da CNV foram “levianas” e chamou os trabalhos de “patético esforço para reescrever a história”.
A lista de militares de alta patente apontados como autores ou responsáveis por chefiar ações violentas na ditadura e que deixaram pensões até hoje tem ao menos mais dois nomes. Um deles é Fernando Belfort Bethlem, que chegou a ser cotado para a sucessão do presidente Ernesto Geisel.
Bethlem foi alçado a ministro do Exército em 1977, cargo em que ficou até 1979. Foi justamente em 1977 que ele assinou um manifesto de militares defendendo a “linha dura” do regime militar. Bethlem deixou pensão de R$ 32.716,20 para a filha Maria Regina Bethlem Monteiro, paga até hoje.
Um segundo nome de peso na lista de instituidores de pensão é Samuel Augusto Alves Corrêa, ex-chefe da 5ª Região Militar, de Curitiba, de julho de 1974 a janeiro de 1977. Nessa época, o Exército deflagrou a Operação Marumbi, denunciada por casos de prisão ilegal e tortura.
A operação, que afirmou buscar membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), teria prendido cerca de cem pessoas, com relatos de detenções arbitrárias. Alves Corrêa também foi chefe do Estado-Maior das Forças Armadas entre 1979 e 1980, na presidência de João Figueiredo. Ele deixou duas filhas pensionistas, Heloiza Alves Corrêa e Maria Lucia Alves Corrêa, que recebem R$ 16.358,10 cada uma.
As pensões dos comandantes que dizimaram a Guerrilha do Araguaia
No início da década de 1970, uma série de operações das Forças Armadas dizimou a maior parte dos militantes da Guerrilha do Araguaia, grupo político instalado ao longo do rio Araguaia. Os guerrilheiros, que pretendiam formar um exército popular camponês na região, foram vítimas de tortura, desaparecimento forçado e execução extrajudicial durante as operações Papagaio, Sucuri, Marajoara e Limpeza.
Somente em fevereiro, o Brasil despendeu cerca de R$ 200 mil em pensões para nove herdeiras de sete militares envolvidos na repressão à guerrilha
Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão judicial autônomo ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil por uma série de violações de direitos humanos relacionados ao desaparecimento de 62 membros da Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 1970.
Além de determinar o pagamento de indenizações e outras reparações, a CIDH ordenou que o Brasil investigasse e responsabilizasse os responsáveis pelos crimes, ressaltando que o Estado não poderia aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores.
Desde então, o MPF apresentou uma série de denúncias contra os responsáveis pelos delitos. A Justiça brasileira, no entanto, continua barrando as iniciativas, com base na Lei de Anistia e no instituto da prescrição.
Enquanto os familiares das vítimas da Guerrilha do Araguaia continuam buscando justiça e esclarecimentos sobre o paradeiro de seus parentes, várias filhas e viúvas dos perpetradores das violações de direitos humanos relacionadas ao caso recebem milhares de reais em pensões vitalícias. Somente em fevereiro, o Brasil despendeu cerca de R$ 200 mil em pensões para nove herdeiras de sete militares envolvidos na repressão à guerrilha.
O general Olavo Vianna Moog esteve à frente do Comando Militar do Planalto na época das primeiras incursões contra a guerrilha, tendo também liderado a Operação Papagaio, em 1972.
Sua filha recebeu R$ 30.585,40 de pensão em fevereiro. A Papagaio contou também com a atuação de Herculano Pedro de Simas Mayer, chefe da seção de operações da Força de Fuzileiros Navais, que deixou pensões de R$ 13.249,90 para cada uma das duas filhas.
O tenente-coronel Carlos Sérgio Torres comandou a operação subsequente, denominada Sucuri, que ocorreu entre maio e outubro de 1973. O militar deixou pensão de R$ 28.740,71 para sua viúva.
As informações colhidas na Sucuri embasaram a Operação Marajoara, a mais mortal das ofensivas das Forças Armadas contra os guerrilheiros, quando a maioria dos militantes foi dizimada. O general de divisão Hugo de Andrade Abreu, que comandou a tropa de paraquedistas enviada ao Araguaia durante a operação, deixou pensão para duas filhas, no valor de R$ 16.611,85 cada uma. Já o coronel Celso Lauria atuou na repressão ao longo de 1974, a partir do CIE, em Brasília. Sua filha recebeu, em fevereiro, R$ 27.798,25.
Há ainda mais dois militares envolvidos nas operações contra a Guerrilha do Araguaia que deixaram pensões vitalícias para suas viúvas: os coronéis Eni de Oliveira Castro e Herbert de Bastos Curado, ambos ligados ao 10º Batalhão de Caçadores em Goiânia (GO). A esposa de Castro recebeu R$ 28.260,30 no último fevereiro; já a de Curado, que também foi secretário de Segurança Pública de Goiás, recebeu R$ 24.628,68 no mesmo período.
Militar ligado a ataques contra indígenas deixou pensão para herdeira
Durante o regime militar, grandes obras de infraestrutura na Amazônia resultaram na morte de milhares de indígenas. Em nome do Programa de Integração Nacional (PIN), implantado na década de 1970 pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici, indígenas morreram para que abrissem espaço entre as matas para hidrelétricas, estradas e áreas de exploração de mineradoras e garimpos.
Segundo relatório de 2014 da CNV, entre 1946 e 1988 mais de 8.350 indígenas foram torturados e assassinados pelo Estado, com uma intensificação das mortes durante a ditadura.
Entre os povos diretamente afetados pelo regime estão os Waimiri-Atroari – localizados no sul do estado de Roraima, na divisa com o Amazonas –, que tiveram suas terras devastadas para a construção da BR-174, estrada que liga Manaus a Boa Vista.
Ainda de acordo com a CNV, os Waimiri-Atroari representam ao menos 2.650 das mortes ocorridas no período, dentro de uma população de pouco mais de 3.000 indígenas.
Na obra Os Fuzis e as Flechas – história de sangue e resistência indígena na ditadura, o jornalista Rubens Valente cita um relatório elaborado pelo governo no fim dos anos 1960 no qual o comandante do 2º Grupamento de Engenharia e Construção do Exército, Gentil Nogueira Paes, responsável pela construção da BR-174, determina “pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos [índios] os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite”.
O MPF no Amazonas chegou a exigir do Estado brasileiro indenização no valor de R$ 50 milhões pelas violências sofridas pelo povo Waimiri-Atroari, sob as ordens de Gentil.
Protocolada em 2019, a denúncia do MPF afirma que as provas apresentadas à Justiça “demonstram que o Estado brasileiro promoveu ações baseadas nas políticas de contato e de ataques diretos aos indígenas que causaram a redução demográfica do povo Waimiri-Atroari em larga escala”.
O processo foi acatado na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1001605-06.2017.4.01.3200, contudo foi arquivado no ano passado.
Somente um envolvido em tortura foi punido após relatório da CNV
Enquanto isso, Gentil é um dos militares acusados de crimes durante a ditadura, cuja família continua recebendo benefícios do Estado por sua atuação. Desde outubro de 2013, as duas filhas do militar recebem uma pensão mensal e vitalícia que em fevereiro deste ano chegou a custar R$ 31.413,50 aos cofres públicos. Ninita Nogueira e sua irmã, Nísia Nogueira, receberam R$ 15.706,75 cada uma.
Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em novembro de 2011, a CNV iniciou seus trabalhos em maio de 2012, entregando o relatório final em 10 de dezembro de 2014. A CNV listou 434 mortos e desaparecidos políticos e apontou 377 pessoas como responsáveis por crimes no período da ditadura militar.
A despeito de as condenações que o Brasil sofreu perante a CIDH – casos Guerrilha do Araguaia (2010) e Herzog (2018) – determinarem que a Lei de Anistia e instrumentos como a prescrição não podem ser aplicados nos crimes da ditadura, praticamente nenhum militar foi responsabilizado até hoje.
Algumas iniciativas para que houvesse punição foram barradas pelo Judiciário em diferentes instâncias, geralmente sob o argumento de que os crimes haviam prescrito ou de que estavam cobertos pela Lei de Anistia. É o que ocorreu no caso Rubens Paiva, em que ação penal iniciada pelo Grupo de Trabalho Justiça de Transição, do MPF, foi interrompida pelo desembargador federal Messod Azulay em 2014.
A única exceção ocorreu em junho de 2021, quando a 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo condenou o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto a dois anos e 11 meses de prisão. Conhecido como “Carlinhos Metralha” ou “Carteira Preta”, ele serviu no Dops de São Paulo e é um dos citados na lista da CNV.
Ele foi condenado pelo crime de sequestro qualificado do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, após denúncia do MPF, em decisão inédita.