Na mira do Senado

Análise da semana: Dominguetti joga emaranhado de fios soltos no colo da CPI da Covid

De cavalo de troia a boi de piranha, policial militar traz narrativa repleta de questionamentos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Luiz Paulo Dominghetti Pereira, que também é cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, falou à CPI nesta quinta-feira (1º) - Pedro França/Agência Senado

Não há dúvidas de que o depoimento de Luiz Paulo Dominghetti Pereira aos senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid foi o ponto alto da CPI nesta semana. O cabo da Polícia Militar de Minas Gerais é representante da empresa estadunidense Davati Medical Supply. 

Ficaram relegados ao segundo plano o depoimento do deputado estadual do Amazonas Fausto Vieira dos Santos Junior (PRTB), que foi relator da CPI da Saúde realizada pela Assembleia Legislativa do estado em 2020, e do empresário Carlos Wizard, que poderia ter contribuído com as investigações em curso, mas preferiu ficar em silêncio.

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Luiz Paulo Dominghetti Pereira

O relato desta quinta-feira (1º) trouxe mais perguntas do que respostas. Foram pelo menos três pedidos de prisão do depoente, vindos de senadores da base do governo e da oposição, e a apreensão do celular de Dominguetti para perícia já durante seu depoimento.

Em meio ao desenrolar do depoimento, surgiu a tese de que o policial militar foi implantado na comissão para deslegitimar os fatos declinados à CPI na última semana: um suposto esquema de fraude na negociação para a compra de doses do imunizante Covaxin entre o Ministério da Saúde e a empresa Precisa Medicamentos, responsável pela venda no Brasil do imunizante produzido pelo laboratório indiano Bharat Biotech. 

Em seu depoimento, Dominghetti confirmou que Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, cobrou uma propina de US$ 1 por dose de vacina, durante a negociação de 400 milhões de unidades do imunizante produzido pelo laboratório britânico AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford.

O valor apresentado por Dominghetti teria sido de US$ 3,50 por dose. Com a propina, Dias sugeriu que ele cobrasse US$ 4,50 por dose. O caso foi primeiro noticiado pela Folha de S. Paulo, na última terça-feira (29). No mesmo dia, Dias foi exonerado do cargo. 

Com Dias, estavam presentes o coronel Marcelo Blanco, assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, e supostamente o coronel Alexandre Martinelli Cerqueira, ex-subsecretário de Assuntos Administrativos do Ministério da Saúde. Blanco confirmou que estava no jantar, já Cerqueira, negou.

As condições sob as quais foi feito o pedido de propina traz alguns questionamentos que ficaram sem resposta durante a sessão. 

Primeira pergunta. É plausível o governo federal negociar a compra de 400 milhões de doses de uma vacina contra a covid-19, uma doença que segue em curso e já é responsável pela morte de mais de 500 mil brasileiros, em um restaurante dentro de um shopping? Mais: ao lado de dois coronéis, um já exonerado do cargo e outro que possui uma empresa de representação comercial de medicamentos? 

Segunda pergunta. Porque o governo decidiu negociar a compra de 400 milhões de doses com uma empresa que não tinha as vacinas prometidas, já que o laboratório AstraZeneca, como afirmou em nota, não vende imunizantes para empresas privadas, somente a governos?

Terceiro questionamento. Em declaração concedida ao jornal Estado de S.Paulo, o presidente da Davati, Herman Cárdenas, afirmou que incluiu o nome de Luiz Paulo Dominghetti Pereira nas comunicações com o governo brasileiro “a pedido”, mas não detalhou de quem.

Antes de Dominguetti entrar na jogada, o próprio militar disse que Marcelo Blanco já vinha conversando diretamente com a empresa, por meio de outro representante da companhia no Brasil, Cristiano Alberto Carvalho, ao lado de Roberto Ferreira Dias. Se o governo federal já estava em contato com a Davati, como e porque Dominguetti foi chamado ao campo? 

Lembrando que Dominguetti não tem nenhuma relação contratual com a Davati. “Havia um acordo de cavalheiros [diga-se de passagem, bilionário], até porque eu sou funcionário público e não posso assinar contrato”, afirmou o policial militar. Na negociação, seu rendimento seria de três a cinco “cents” (centavos de dólar) por dose vendida. Com a venda de 400 milhões de doses, Dominghetti ganharia US$ 12 milhões, o equivalente a aproximadamente R$ 60,5 milhões.

Quarta pergunta. Salienta aos olhos o fato de Dias ter sido indicado ao cargo na Saúde pelo líder do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O parlamentar está no centro da denúncia do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), sobre o esquema de fraude na negociação para a compra do imunizante Covaxin. Ricardo Barros teria alguma relação com a nova denúncia de fraude, desta vez apresentada por Dominguetti?

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Em determinado momento do depoimento, ao ser questionado se algum parlamentar tinha relação de negociação de vacinas com a Davati Medical Supply, Dominghetti afirmou que o deputado federal Luis Miranda procurou o representante da empresa Davati Medical Supply no Brasil, Cristiano Alberto Carvalho, para negociar a compra de doses. 

Foi quando Dominghetti reproduziu um áudio em que Miranda conversa com Cristiano Carvalho sobre a negociação de produtos, enviado pelo próprio representante da Davati (Carvalho) ao policial militar. O depoente deu a entender se tratar de tratativas para aquisição de vacinas, mas ressalvou: “Senti que Cristiano e o deputado Luis Miranda teriam algumas tratativas comerciais, mas o que foram somente o Cristiano [Alberto Carvalho] pode elucidar”.

Luis Miranda afirmou que o áudio apresentado por Dominghetti está editado, data de 2020 e se refere a uma relação comercial para compra e venda de luvas. Após a constatação de que se tratava de áudio editado para dar a entender que as conversas sobre um assunto se referiam a outro, Dominghetti afirmou que não sabia da adulteração do material enviado por Carvalho. 


Em meio ao depoimento de Dominguetti, o deputado federal Luis Miranda chegou a entrar na sala da CPI para dar a sua versão sobre o áudio / Pedro França/Agência Senado

Quinta pergunta. Dominguetti está mais para cavalo de troia ou boi de piranha? Sabia ou não da adulteração do áudio? E, mais, o que explica a divulgação de áudio adulterado aos senadores da CPI, de um depoente que expôs o que pode ser um dos maiores escândalos de corrupção do país?

As perguntas devem ser em parte respondidas na próxima semana, quando os senadores vão escutar o deputado federal Luis Miranda, novamente, no dia 6; Roberto Ferreira Dias (7); e Ricardo Barros (8). O calendário foi divulgado na última quarta-feira (30) e até a próxima segunda-feira (5) pode sofrer alterações

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Carlos Wizard

Se na quinta-feira, os senadores tiveram bastante trabalho para entender tudo o que estava sendo dito por Dominguetti, no dia anterior, as expectativas morreram antes de chegar à praia. Após finalizar o seu discurso de 15 minutos, que nada trouxe de relevante em termos de investigação, o empresário Carlos Wizard arrogou para si o direito de ficar em silêncio, como garantido por um habeas corpus concedido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, ainda no dia 16 de junho. Assim, Wizard foi o primeiro depoente a ficar em silêncio diante das perguntas dos senadores. 

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Esperava-se que Wizard pudesse trazer algum elemento sobre o suposto “gabinete paralelo”, que seria composto por empresários, entre eles Wizard, e médicos que aconselhariam o presidente acerca do uso de medicamentos comprovadamente ineficazes pela ciência contra a covid-19, como hidroxicloroquina e cloroquina. 


O senador bolsonarista Marcos Rogério (DEM-RO) posa para foto com o livro recebido do empresário Carlos Wizard / Marcos Oliveira/Agência Senado

Como se não bastasse, seu depoimento, para além de seu discurso inócuo de 15 minutos, se restringiu à furada tentativa de propagandear o seu livro "Meu maior empreendimento: uma missão de fé, amor e trabalho comunitário", depois que a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) perguntou qual religião Wizard segue. O livro narra sua viagem à Roraima durante a crise humanitária de refugiados da Venezuela.

"Não vai vender livro aqui, não", disse Omar Aziz (PSC-AM), presidente da CPI.

Fausto Vieira dos Santos Junior

Já no primeiro dia de CPI desta semana, o depoimento do deputado estadual do Amazonas Fausto Vieira dos Santos Junior (PRTB), foi marcado, como não poderia ser diferente, pelo colapso de saúde em Manaus, em janeiro deste ano, devido à escassez de oxigênio na capital e à superlotação dos hospitais.

Junior, que foi relator da CPI da Saúde realizada pela Assembleia Legislativa do estado em 2020, afirmou que, ao fim da comissão estadual, não solicitou o indiciamento do governador Wilson Lima (PSC) por falta de elementos que poderiam conectá-lo aos desvios de recursos públicos encontrados. 


O deputado afirmou que Omar Aziz, que é ex-governador do Amazonas, tem participação na crise sanitária de Manaus / Edilson Rodrigues/Agência Senado

A decisão veio mesmo após constatar "promíscua mistura de corrupção e incompetência". Para Junior, Lima sabia “de tudo” e a falta de oxigênio era “tragédia anunciada”.

"Eu tenho convicção de que o governador sabia de tudo, mas a CPI precisa provar", disse o deputado estadual, para quem somente a Polícia Federal poderia seguir com as investigações.

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Além de Lima, o deputado afirmou que Omar Aziz, que é ex-governador do Amazonas, tem participação na crise sanitária de Manaus e que deveria ser indiciado por pagamentos feitos sem licitação, durante a sua gestão. Junior ainda disse que tentou propor o indiciamento de Aziz.

"A gente vai chegar lá no final e vocês vão ver quem é quem aqui", disse Aziz, durante o depoimento de Junior. Em seguida, o deputado estadual disse: "Eu falo do seu governo e o senhor me ameaça de prisão, senador?"

Edição: Rebeca Cavalcante