Até quatro anos atrás, Pedro Castillo era um personagem quase desconhecido no Peru. Professor do ensino fundamental e sindicalista, ele morou, durante a maior parte de seus 51 anos, na província de Cajamarca, a 850 quilômetros de Lima.
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É uma região pobre e agrícola, na qual o movimento guerrilheiro Sendero Luminoso exerceu forte atividade nos anos 1970-80. Em 2017, Castillo tornou-se o principal líder local da greve de três semanas deflagrada por sua categoria, o que lhe granjeou alguma fama nacional.
A partir daí, sua atividade política iniciada há quase quarenta anos, quando se juntou aos ronderos, grupos de camponeses que se opunham tanto à guerrilha quanto ao exército, se intensificou.
Passou a correr o país e surgiu como o “candidato do interior” na corrida presidencial. O ex-sindicalista conhece as artes da imagem e fez do chapéu branco de sua região uma espécie de símbolo de campanha.
A vitória sobre Keiko Fujimori, representante mais vistosa da extrema-direita local, se deu por mínima margem. E foi imediatamente contestada pela candidata, com a esperada alegação de fraude.
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Diferenças mínimas
A estreita diferença com que Castillho superou a oponente não é novidade na política local. Há duas características básicas nas últimas disputas presidenciais peruanas.
A primeira são as seguidas derrotas de Keiko Fujimori. A segunda é que nos dois pleitos anteriores, o país também se dividiu ao meio. Ollanta Humalla a venceu por 51,44% a 48,55% dos votos válidos, em 2011, e com Pedro Paulo Kuczynski, a diferença foi ainda menor, 50,12% a 49,87. Agora, o placar marcou 50,21% a 49,79%.
Por que isso acontece? É difícil determinar. Nos casos dos enfrentamentos entre Keiko Fujimori e Ollanta Humalla e entre ela e Castillo, a polarização política foi clara: de um lado havia discursos de centroesquerda e, de outro, a apologia da ditadura de seu pai, Alberto Fujimori, que governou o país em um regime ditatorial, entre 1990 e 2000.
Mas as diferenças entre Keiko e Kuczynski, alto executivo do mercado financeiro, estavam muito mais em nuances dentro do espectro conservador-liberal do que num nítido contraste ideológico.
O Peru está imerso em uma grave crise política e econômica desde pelo menos 2016 e enfrenta agora a hecatombe sanitária da pandemia da covid-19. Uma das marcas de sua economia extrativista e primário-exportadora tem sido bons índices de crescimento com concentração de renda e aumento da desigualdade social.
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No caso da pandemia, o país ostenta um dos mais altos índices proporcionais de mortes pela doença. No final de abril, a marca atingiu 26 por milhão de habitantes, bem acima da fração brasileira, que chegava na ocasião a 11,8%, tendo caído desde então.
De acordo com o World Economic Outlook, do Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia local se retraiu 11,1% em 2020 e deve crescer 8,5% em 2021 e 5,2% em 2022, graças a uma alta do preço internacional das commodities, observada neste primeiro semestre.
Desgaste da atividade política
O mergulho recessivo do ano passado se soma a um desgaste da política institucional, causado por sucessivos escândalos de corrupção. Em 2018, uma versão local da operação Lava Jato arrolou uma série de denúncias contra o então presidente Pedro Paulo Kuczynski.
Ele teria recebido propinas da Odebrecht, gigante brasileira presente no país desde 1979 e que tocava dezenas de obras de infraestrutura em todo o país.
O chefe do Executivo acabou renunciando e seu vice, Martin Vizcarra assumiu o cargo. Em pouco mais de dois anos, novas denúncias geraram um processo de impeachment – sob o argumento de que o mandatário era “moralmente incompetente”. Apesar da estranheza da alegação, ela é constitucionalizada desde 1828.
Em seguida, o presidente do Congresso Nacional, Manuel Merino, foi empossado, cumprindo apenas uma semana de mandato, por não ter sustentação no Legislativo. Após intensas disputas congressuais, Francisco Segasti foi indicado presidente interino, até as eleições de agora.
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Assim como no Brasil, a cruzada moralizante tem sólidos laços com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Em 2016, o órgão publicou documento, apontando que todos os presidentes das duas décadas anteriores se envolveram em histórias mal contadas, assim como vários administradores regionais e locais.
Talvez o caso mais dramático seja o de Alan Garcia, que dirigiu o país entre 2006-11. Quando a polícia chegou em sua casa com uma ordem de prisão, em 17 de abril de 2019, ele se refugiou no banheiro e meteu uma bala na cabeça.
Keiko Fujimori não escapou da razia lavajatista, permanecendo detida por 16 meses, entre 2018-20.
O azarão
Castillo entrou na disputa como coadjuvante inesperado e roubou a cena principal. A perda de credibilidade de lideranças tradicionais acabou lhe abrindo espaço entre outros 17 candidatos no primeiro turno da disputa presidencial. Obteve surpreendentes 18,9% dos votos, contra 13,4% de sua oponente, Keiko Fujimori.
A filha do ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000) realizou uma campanha esperta. Exibiu um programa de governo elaborado por marqueteiros, com ênfase no caráter social do Estado, ao mesmo tempo em que deflagrou uma rasteira campanha anticomunista contra seu oponente.
A operação envolveu a produção de vídeos estrelados por craques do futebol local, alardeando o perigo que as famílias correriam com a suposta volta do terrorismo dos anos 1980.
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Fenômeno eleitoral com forte apelo junto às classes médias urbanas, a ex-deputada buscou se posicionar como caudatária de uma direita moderna – variante do neoliberalismo progressista, de que fala Nancy Fraser –, com propostas focadas na melhoria da educação pública, ampliação dos direitos da infância e da adolescência e foco na igualdade de gêneros.
Nada a ver com o bolsonarismo, que foi incapaz de suscitar uma sólida corrente de opinião continental.
Tópicos como defesa de equiparação salarial entre mulheres e homens, denúncias de violência e de feminicídio, além de promessas de melhorias nos serviços públicos apresentaram
Keiko Fujimori como postulante moderna e multifacetada. Seus materiais de campanha propunham fortalecimento de serviços públicos em várias áreas, ao mesmo tempo em que exaltavam a lembrança paterna de intolerância com a criminalidade e o terrorismo, uma espécie de maravilha curativa para todos os medos da população.
Apesar de condenado e preso desde 2009 por crimes contra a humanidade, o pai é mencionado como alguém que salvou o Peru da hiperinflação e da anarquia.
As diretrizes programáticas
A agremiação de Pedro Castillo emergiu – como ele - quase de surpresa no confuso cenário local. Criado em 2007, o Partido Político Nacional Peru Livre se assume oficialmente como “marxista-leninista-mariateguista” e nunca teve um desempenho eleitoral expressivo.
Seu programa é muito próximo das formulações da socialdemocracia europeia clássica, dos anos 1950-60. Entre outras coisas, propõe recolocar o Estado no centro da atividade econômica, para que este assuma suas características de “controlador, planejador, empresário, protetor, inovador e regulador do mercado”.
O candidato ainda aponta que “o orçamento anual do setor público (...) deve ser reconsiderado na seguinte prioridade: educação, saúde, transporte, agricultura e saneamento”.
Os destaques são a destinação de 10% do PIB para a educação, além de um “sistema de saúde único, gratuito, massivo, descentralizado, participativo e de qualidade”, algo próximo ao SUS brasileiro.
O centro das diretrizes de governo é a convocação de um plebiscito para que a população se manifeste sobre a realização de uma assembleia constituinte. A meta é revogar a Carta de 1993, outorgada durante a ditadura de Alberto Fujimori.
Apesar das intenções, é difícil que Castillo consiga maioria parlamentar para aprovar seus projetos. Nenhum partido tem alta presença relativa num Legislativo dividido entre 11 bancadas.
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O Peru Livre, um dos que obteve melhores resultados, conquistou apenas 11% das cadeiras e as chances da formação de uma coalizão progressista para obter maioria de votos é mínima.
O presidente eleito é acusado de conservador e autoritário. Há fundamentos nessa constatação.
Na campanha de primeiro turno, Castillo prometeu “desativar o Congresso” e fechar o Tribunal Constitucional (a suprema corte), caso suas propostas não fossem aprovadas. Na área de direitos civis, entidades e partidos progressistas ficaram de cabelo em pé ao saberem que o professor é contra o direito ao aborto e se opõe a “questões de gênero” e prerrogativas da população LGBT.
Visando conquistar a classe média urbana no segundo turno – eleitorado preferencial de sua oponente - e pressionado por apoiadores mais à esquerda, Castillo moderou e mudou algumas de suas posições originais.
Giro político
A vitória de Pedro Castillo pode representar um giro político interno e expressar um novo rechaço continental ao neoliberalismo.
Sua eleição se dá num quadro de instabilidades continentais e pode indicar que a onda conservadora inaugurada com a eleição de Maurício Macri, na Argentina (2015), e com o golpe contra Dilma Rousseff, no Brasil (2016), esteja perdendo impulso.
Castillho se soma a dois presidentes de centroesquerda eleitos recentemente, o argentino Alberto Fernández e o boliviano Luís Arce, bem como ao expressivo desempenho de candidatos progressistas e independentes na eleição constituinte chilena, fruto de fortes marchas de protesto observadas desde 2019.
O quadro se completa com as mobilizações populares colombianas, quase ininterruptas há 45 dias, e a crescentes sinais de descontentamento social com o bolsonarismo no Brasil.
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É preciso acompanhar com atenção a formação do novo governo e seus primeiros passos, diante de um panorama interno tão adverso. É difícil dizer se estamos entrando em nova onda de centroesquerda na América do Sul.
Disso depende não apenas as intenções das lideranças, mas a superação do terrível quadro da pandemia e as oscilações da economia. Acima de tudo, é preciso ficar de olho no comportamento do maior país da região, governado vocês sabem por quem.
*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e integrante do OPEB (Observatório de Política Externa e Inserção Econômica Brasileira da UFABC.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo