“Estudei e me formei cheio de esperança. O perfil de quem vai para o serviço público é, muitas vezes, o de alguém mais esperançoso, de quem vê as coisas a longo prazo. Eu me acostumei a esperar mudanças que demoram mais para acontecer e percebi que as coisas são, às vezes, cíclicas, mas eu acreditava, sempre acreditei no trabalho. Hoje, eu me sinto perdido”.
É assim que o servidor público federal X.Y.Z. resume a situação em que se encontra após uma jornada de atuação na área ambiental que terminou lhe colocando “na geladeira”. Nos últimos anos, ele chegou a ser transferido de uma função que ocupava no Ministério do Meio Ambiente (MMA) na região Centro-Oeste para um cargo ligado a outra pasta em outra região do país, cuja especificação ele prefere omitir.
O funcionário público conta que foi parar no ostracismo após formular pareceres “incômodos” que denunciavam danos ambientais e violações de direito em casos envolvendo grandes empresas.
“Antigamente, quando se colocava alguém na geladeira – porque isso sempre existiu no serviço público –, a pessoa ficava uns dois meses num porão trabalhando lá com o computador. Agora a geladeira é um negócio mais complicado e de longo prazo. Ela acaba com você”, desabafa o servidor, ao analisar o contexto de isolamento imposto a trabalhadores do ramo.
Ele observa que a situação tem se agravado especialmente na gestão de Jair Bolsonaro, constantemente associada à intolerância com defensores do meio ambiente e dos direitos humanos.
A história relatada por X.Y.Z. traduz o cenário em que se encontram diversos servidores públicos federais que atuam na defesa do meio ambiente. Os casos de ameaça e perseguição a funcionários públicos com esse perfil recaem especialmente sobre aqueles cujo trabalho envolve fiscalização e controle ambiental.
“As pessoas que fazem a parte principal são as que estão sendo perseguidas ou removidas à revelia. Os processos de remoção estão acontecendo sem nem o servidor saber que ele está mudando de setor. Quando ele vê, saiu no Diário Oficial a comunicação de que ele não está mais na área dele”, resume a ativista Sílvia Nascimento, da Maré Socioambiental, articulação civil que acompanha a problemática no país.
A porta-voz de Políticas Públicas do Greenpeace, Thais Bannwart, observa que não é possível desvincular as perseguições a defensores do meio ambiente do contexto político-institucional do Brasil, que tem chamado cada vez mais a atenção do mundo em termos de desproteção a comunidades vulneráveis e recursos naturais.
Um levantamento recente do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostrou que o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, editou pelo menos 317 atos oficiais que colocam a política ambiental brasileira em risco. O dado é referente ao período entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020, quando o mandatário completou exatos dois anos no cargo.
O número contabilizado pelos pesquisadores inclui portarias, instruções normativas, resoluções, deliberações e despachos. As ações se dão em diversas frentes.
“Bolsonaro já queria extinguir o MMA. Como ele não conseguiu, colocou um ministro muito eficaz em sucatear e retirar autonomia dos órgãos – Ibama, ICMBio, etc. –, demitindo o corpo técnico, substituindo servidores públicos, por exemplo. A gente vê um aparelhamento dos órgãos ambientais”, cita Thais Bannwart.
Ela lembra as diferentes ocasiões em que Bolsonaro fez críticas às práticas de multas a infratores ambientais e apreensão de equipamentos, medidas associadas à fiscalização.
“Você vai sucateando as estruturas ambientais e colocando o servidor numa situação de constrangimento, coerção, ameaça, e aí esses fiscais que estão nesses territórios acabam ficando completamente vulneráveis à violência dessas quadrilhas criminosas que cometem atos ilegais.”
O Brasil de Fato tentou ouvir o MMA sobre o tema, mas ainda não obteve resposta.
Ao refletir sobre contexto, o diretor-adjunto da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do PECMA (Ascema), Alexandre Gontijo, menciona a gravidade que assumem os conflitos de interesse que envolvem ataques a fiscais da área.
Ele exemplifica resgatando o episódio em que três brigadistas foram rendidos em uma base ecológica no estado de Roraima no último domingo (30). Fortemente armados, os bandidos roubaram materiais que haviam sido apreendidos pelos agentes, além de quadriciclos usados na fiscalização, entre outros itens.
“O boato que circula é de que esses invasores estavam procurando servidores para assassinar mesmo. No Brasil, quando a gente fala de crime ambiental, a gente está falando de crimes bastante violentos”, grifa Gontijo, mencionando os riscos que correm os trabalhadores do ramo.
“Especialmente na região Norte, os madeireiros ilegais, garimpeiros ilegais, grileiros são todos associados com trabalho escravo, pistolagem e estão armados. E, mais recentemente, a gente percebe que, especialmente no caso do garimpo ilegal, há uma relação com o narcotráfico, principalmente na região da fronteira.”
Panorama
Não há, no Brasil, uma contagem oficial que especifique o número de ambientalistas ameaçados a cada ano ou de servidores públicos da área que foram removidos por perseguição. O dado mais próximo e emblemático de que se tem notícia vem de fora do país, da ONG Global Witness, organização com sede em Londres, na Inglaterra, e em Washington, nos Estados Unidos.
A entidade acompanha casos dessa natureza e, em levantamento divulgado no ano passado, apontou o Brasil como o terceiro país do mundo em termos de assassinatos de ativistas ambientais e dos direitos humanos. Foram 24 mortes em 2019, ano da última pesquisa, quando o país ficou atrás apenas das Filipinas e da Colômbia.
Na ótica da entidade, o Brasil passou a ser, em 2002, o lugar do mundo mais perigoso para defensores do meio ambiente. A Global Witness estima que, entre 2002 e 2018, tenham ocorrido 653 execuções de pessoas com esse perfil em território nacional, o maior número do século XXI até então.
São casos como, por exemplo, o da missionária Dorothy Stang, morta em 2005, no Pará, por pistoleiros que agiram a mando de fazendeiros. A lista também inclui biólogos, indígenas, trabalhadores sem terra e outras lideranças de comunidades que batalham pelo direito a terras tradicionais ou contra desmandos que resultaram em apropriação ilegal de recursos naturais.
“A porteira foi aberta para o inimigo”
No Brasil contemporâneo, as perseguições a ambientalistas ganham a forma de ameaças àqueles que atuam contra práticas ilegais de madeireiros, ruralistas, hidrelétricas, usinas eólicas e outras grandes companhias envolvidas em práticas fora da lei.
A Amazônia é o cenário que serve de principal pano de fundo a esse tipo de problema. O enredo que hoje desenha a vida do biólogo A.F.C. ajuda a contar essa história. Atuando há mais de uma década no estado do Pará, ele pediu para não ser identificado na reportagem “por medo de ir para a cova”.
A.F.C. integra um grupo que ajudou a denunciar o desmatamento ilegal em regiões de fronteira do Pará, que, no final de 2020, completou exatos 15 anos consecutivos como o estado que lidera o ranking desse tipo de problema na Amazônia.
O Pará também acumula 19 anos como o líder em queimadas. A contagem é do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes).
“É por causa desse tipo de coisa que a gente continua agindo e denunciando, mas custa muito caro fazer tudo isso. É um tanto claro perceber que, nesses últimos anos, a porteira foi aberta para o inimigo passar sem fazer cerimônia, ou seja, eles estão no poder e nós estamos cada dia mais escondidos, vivendo na penumbra pra não morrer”, diz o biólogo, com a voz embargada do outro lado da linha.
O ativista conta que hoje “estuda os passos” que dá com a família pra evitar um ataque direto que possa comprometer a integridade do núcleo. Ele afirma que se sente como se a vida tivesse sido sequestrada pelos que o perseguem. O tipo de caso denunciado pelo biólogo está intimamente relacionado a invasões de terra e disputas fundiárias.
“É uma turma que não vislumbra o futuro, e agora nem a gente vislumbra mais isso direito. No caso deles, porque só pensam no tempo presente e no lucro imediato mesmo; no nosso caso, porque já estamos quase sem fé no tempo que está por vir”, exprime A.F.C.
Auxílio
É esse tipo de cenário que estimula o surgimento de serviços especializados em amparar profissionais ameaçados. Na Paraíba, por exemplo, foi inaugurado, nos últimos dias, o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas.
Efetivada por meio de um decreto estadual, a iniciativa resulta de convênio com o governo federal e vinha sendo trabalhada desde 2019. A essência da ação se baseia na Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, que entrou em vigor no país em 2007, por isso há experiências do tipo em diferentes outros estados. Na Paraíba, o programa ainda se prepara para receber os primeiros casos a serem atendidos.
A meta é auxiliar profissionais e militantes que estejam sob risco por meio da atuação de uma equipe multifuncional formada por advogado, assistente social, psicólogo, serviço administração e coordenação.
A inclusão de ambientalistas no rol de assistidos é vista como uma necessidade associada ao contexto de violência observado no Brasil contra esses ativistas. O programa tem pela frente o desafio de garantir que tais atores possam dar sequência ao trabalho com menor grau de risco.
“É garantir a proteção do sujeito que está sofrendo ameaça por um conflito no próprio local onde ele está, sem tirá-lo de lá. Tem situações extremas em que o programa prevê de remoção temporária, mas não é o objetivo inicial. Nosso papel é também pensar uma política que dê conta de atuar na origem daquilo que está gerando a violência”, explica a socióloga Natasha Batusich, técnica de referência na implantação da ação.
Se esse tipo de medida pode ajudar a estimular a resistência dos ambientalistas hoje ameaçados, quem responde é o biólogo A.F.C., que, por estar na mira de garimpeiros, faz uso desse tipo de serviço no Pará: “Prefiro apostar nisso do que mergulhar no pessimismo dos que querem que as novas gerações se omitam frente ao desmonte ambiental. Lamento por todo este cenário de hoje, mas ainda me esforço pra acreditar que sempre haverá aqueles que teimam, os resistentes”.
*A reportagem trocou as iniciais dos personagens ouvidos nesta reportagem com vistas à maior proteção das fontes.
Edição: Daniel Giovanaz