Entrevista

Joseph Farrell: "O que fazem com Assange é justificar perseguição de jornalistas"

Embaixador do WikiLeaks analisou a importância de seu trabalho e o método de pesquisa que revolucionou o jornalismo

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Os apoiadores do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, protestam pela sua liberdade de expressão - NIKLAS HALLE'N / AFP

Daqui a três semanas, completará dez anos desde que Julian Assange entrou na embaixada do Equador em busca de asilo político. São 3.634 dias desde que o criador do Wikileaks foi privado de liberdade. Hoje ele permanece detido na prisão de Belmarsh, conhecida como a Guantánamo do Reino Unido. O Página12 conversou com Joseph Farrell, amigo e colega do Assange. Juntos, eles trabalharam por mais de dez anos no Wikileaks. Farrell atua atualmente como Embaixador do site de megavazamentos. "O que eles estão fazendo com Julian está abrindo um precedente para os governos do mundo inteiro, de que não há problemas em perseguir jornalistas e editores", apontou o pesquisador britânico.

Esperando por justiça

Há anos Farrell tem viajado pelo mundo em campanha pela liberdade do jornalista australiano. Em vídeos nos quais fala sobre Assange, fica claro o afeto e a admiração que sente por ele. Farrell tem uma voz calorosa e amigável que emociona a cada vez que ele a levanta para exclamar "Assange livre!". "A única maneira de encerrar esse caso é os EUA retirarem todas as acusações", disse o embaixador do Wikileaks. Ele se refere especificamente à acusação do governo dos EUA, que acusa o Assange de ter "conspirado" com uma de suas fontes, Chelsea Manning, para obter e publicar milhões de documentos secretos. Entre eles, estão os arquivos sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão, a prisão de Guantánamo e comunicações diplomáticas entre várias embaixadas dos EUA e Washington.

A administração Trump fez da extradição do Assange uma questão de Estado. Entretanto, no início deste ano, após um longo julgamento, a juíza britânica Vanessa Baraitser rejeitou o pedido. Ela argumentou que o jornalista australiano poderia cometer suicídio nas duras condições de detenção que enfrentaria na prisão estadunidense. No entanto, ela descartou os argumentos apresentados pela defesa de que a prisão de Assange é uma perseguição política e que a liberdade de imprensa está sendo violada. Também negou a possibilidade de liberdade sob fiança, algo que Farrell considera desproporcional e ultrajante. "O governo dos Estados Unidos recorreu da decisão e estamos esperando para saber se ela será ou não mantida". Se for mantida, teremos mais batalhas judiciais à frente", disse o editor britânico. Caso sua extradição seja mantida, o criador do Wikileaks poderá ser condenado a 175 anos de prisão.

Durante o julgamento, a defesa apresentou relatórios médicos demonstrando a frágil saúde física e mental do Assange. Farrell disse que seu colega está isolado em uma prisão infestada de covid-19. Nos dois anos em que esteve lá, raramente teve autorização para ver sua família e advogados. "Por que eles querem extraditá-lo? Porque ele expôs o verdadeiro custo da guerra no Iraque e no Afeganistão. Porque ele expôs o que realmente acontece na Baía de Guantánamo. Porque ele expôs todos os negócios nefastos que aconteciam a portas fechadas. Porque expôs crimes de guerra e violações dos direitos humanos", disse o jornalista.

Os princípios do Wikileaks

Farrell conheceu Assange em 2010, quando o Wikileaks tinha acabado de lançar o famoso vídeo "Collateral Murder" (Assassinato Colateral), que mostra militares dos EUA assassinando 18 pessoas no Iraque, incluindo dois jornalistas da Reuters. "Eu estava em Londres. Eu tinha acabado de ver uma entrevista de Julian falando sobre o cuidado que nós jornalistas temos que ter para proteger as nossas fontes, quando meu chefe do Centro de Jornalismo Investigativo (CIJ) me disse: 'Joseph, tem alguém vindo à cidade que precisa de ajuda com algumas entrevistas e outros trabalhos. Acho que você deveria passar os próximos três dias com ele, ajudando-o. Ele vai entrar em contato com você em breve". Eu disse a ele que ajudaria, mas na época meu chefe não me disse quem era a pessoa, apenas que eu receberia sua ligação", disse o jornalista.

Algumas horas depois, ele recebeu uma mensagem de texto. "Por favor, me ligue de volta". "Com base no que tinha acabado de ver na entrevista, achei que deveria usar todas essas técnicas de vigilância e proteção de fonte para responder. Deixei meu celular no escritório e caminhei alguns quarteirões até uma cabine telefônica para fazer a ligação. A pessoa do outro lado disse: "Por favor, você pode me encontrar no Frontline Club agora?". Caminhei até lá e, quando entrei, vi Julian sentado em um canto em frente ao seu computador. Íamos trabalhar por três dias, mas 11 anos depois, eu ainda estou lá", relatou o editor.

A anedota dá uma ideia da metodologia de trabalho do Wikileaks. O site mudou a maneira de fazer jornalismo investigativo, fornecendo a suas fontes um banco de dados virtual, anônimo e totalmente seguro no qual colocar informações. Farrell as chama de "caixas de correio anônimas" e enfatiza a necessidade de "dar segurança às fontes". A segunda inovação foi fazer parceria com outros meios de comunicação para trabalhar com a imensa quantidade de informações que receberam. O Página 12 foi um dos mais de cem veículos de comunicação do mundo com os quais o Wikileaks uniu forças quando as informações de cabos diplomáticos secretos dos EUA foram publicados. Foi o chamado "Cablegate" que mostrou, na Argentina, entre outras coisas, como o promotor Alberto Nisman tinha ido à Embaixada dos EUA durante anos para perguntar como proceder no caso AMIA, referente ao ataque ao prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (1994), como Santiago O'Donnell revelou no livro Politileaks.

O terceiro método com o qual o site criado por Assange inovou foi disponibilizar aos leitores o material original com o qual eles trabalham. "Fornecemos o material de origem para que, se alguém discordar do que dissemos, possa acessar e verificar em que se basearam nossas conclusões". É o que chamamos de "jornalismo científico". Assim como um artigo científico, a comunidade pode rever no material de origem tudo o que o cientista declarou", disse o embaixador do site. Farrell também ressaltou que esta dinâmica vem com um bônus: "as pessoas podem procurar no material de origem coisas que podem não ter sido incluídas pela mídia internacional, mas que podem ser relevantes para seu entorno".

Sair da escuridão

Qualquer um pode sentir a adrenalina que Assange deve ter sentido com a perspectiva de atacar o Estado mais poderoso do mundo. Farrell, no entanto, leva a conversa para o lado humano. "Essas publicações não foram para atacar o escalão mais alto do poder. Tratava-se de trazer justiça e encerramento às famílias de tantas pessoas que foram torturadas, abusadas, assassinadas e perderam a vida, para quê? Para nada", disse o jornalista investigativo. O Wikileaks forneceu dados sensíveis para confirmar o que já se suspeitava: "nosso trabalho permitiu que as pessoas pesquisassem os bancos de dados para obter informações e levar aos tribunais. Esses documentos, onze anos depois, ainda estão sendo utilizados", disse o editor britânico.

Assange disse mais de uma vez que não podemos dizer que vivemos numa democracia se as informações sobre o que nossos governos fazem ficam ocultas. Para Farrell, a ofensiva feroz contra o criador do Wikileaks é mais um passo nessa direção. Mas não o único. "Já vimos Bolsonaro ir atrás de Glenn Greenwald". Na Rússia, estão elaborando leis que tornarão ilegais as investigações baseadas em vazamentos", apontou o editor. É por isso que, para ele, mais do que nunca é necessário continuar fazendo jornalismo investigativo. "Como podemos parar o fluxo de corrupção se não somos capazes de ver para onde o dinheiro está indo? Falta de informação significa falta de conhecimento. E isso é o que permite que regimes fascistas e autoritários prosperem", disse Farrell.

*Entrevista publicada em espanhol no Página12. Tradução para o português: Pilar Troya