Autocratas gostam de eventos esportivos internacionais. Eles são ótimos para distrair a atenção de crises. A nação se volta em direção a seus supostos heróis, sob cuja luz o governo também gosta de se banhar.
Portanto, é compreensível que o presidente Jair Bolsonaro tenha concordado imediatamente quando a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) lhe perguntou se a Copa América deste ano poderia ser realizada no Brasil a curtíssimo prazo.
A Conmebol estava num dilema. Inicialmente, o torneio seria realizado na Colômbia e na Argentina. Primeiro a Colômbia desistiu devido às manifestações populares por mais justiça social, que foram respondidas com violência assassina pelas forças de segurança.
O presidente de ultradireita está mergulhado em uma profunda crise. Seus índices de aprovação são os mais baixos desde que ele tomou posse, e centenas de milhares foram às ruas contra seu governo no sábado passado.
Em seguida, a Argentina também recuou porque o governo avaliou que a pandemia de covid-19 ainda estava fora de controle.
Aflito – o pontapé inicial do campeonato é em menos de duas semanas –, o presidente da Conmebol, o paraguaio Alejandro Domínguez, recorreu ao Brasil. Ele contactou o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que por sua vez ligou para Bolsonaro – e em poucos minutos recebeu uma resposta positiva.
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O evento chega na hora certa para Bolsonaro. O presidente de ultradireita está mergulhado em uma profunda crise. Seus índices de aprovação são os mais baixos desde que ele tomou posse, e centenas de milhares foram às ruas contra seu governo no sábado passado.
Os cerca de 500 mil brasileiros que provavelmente terão morrido de covid-19 no país até o início da Copa América não têm qualquer relevância nesse cálculo cínico.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é suspeito de estar em conluio com a máfia madeireira. Além disso, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) expõe todos os dias o fracasso do governo na gestão da pandemia.
Bolsonaro pode ter pensado que, diante da situação atual, não seria uma má ideia ser fotografado com a superestrela Neymar e outros jogadores brasileiros, a maioria dos quais é completamente apolítica.
Os cerca de 500 mil brasileiros que provavelmente terão morrido de covid-19 no país até o início da Copa América não têm qualquer relevância nesse cálculo cínico. Desde o início Bolsonaro negou e minimizou a pandemia. Ele semeou dúvidas sobre as vacinas e fez pouco caso das mortes. Os brasileiros precisam parar de "frescura" e de "mimimi", disse o presidente.
Como resultado, as taxas de infecção no Brasil estão aumentando mais uma vez. Embora 46 milhões de brasileiros tenham recebido pelo menos uma dose da vacina contra a covid-19 (21% da população), uma média de cerca de 1.800 pessoas ainda sucumbem ao vírus todos os dias.
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Especialistas advertem sobre uma terceira onda de infecções e a disseminação de novas mutações. Para piorar a situação, a pobreza e a fome se espalham rapidamente no país. Cada vez mais cidadãos vivem nas ruas ou dependem de ajuda alimentar.
Mas nem Bolsonaro nem a Conmebol parecem se importar. A federação de futebol tem lutado para melhorar sua imagem desde que dezenas de membros de seu conselho foram investigados por corrupção em 2015.
Para a entidade, trata-se de acordos lucrativos de patrocínio e venda de direitos para a transmissão dos jogos na televisão. Bolsonaro, por sua vez, quer passar um senso de normalidade e, de todas as formas, desviar a atenção de sua responsabilidade pelos mortos.
Assim como a Fifa se tornou cúmplice de regimes autoritários na Rússia e no Catar, a Conmebol está agora se tornando cúmplice de Bolsonaro.
A CPI da Pandemia no Senado revelou que, desde o início da crise do coronavírus, Bolsonaro deixou sem resposta pelo menos 41 e-mails da farmacêutica Pfizer, nos quais a empresa oferecia ao país milhões de doses de sua vacina. Não sem razão, Bolsonaro está sendo chamado de "genocida" pela oposição.
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Para Bolsonaro e para a Conmebol é, no entanto, à primeira vista, uma situação em que todos ganham. A confederação salva sua pele, e Bolsonaro desvia a atenção da pandemia.
A Conmebol promete jogos seguros: sem espectadores e com delegações totalmente vacinadas dos dez países participantes. Também argumenta – corretamente – que a América do Sul já sedia campeonatos nacionais atualmente, assim como a Copa Libertadores e as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022 no Catar. Por que não a Copa América também?
Mas a entidade esquece que não há motivos para celebrar tal torneio no Brasil ou na América do Sul – a região mais atingida pela pandemia. Se meio milhão de mortos e a ameaça de novas mutações não são motivos para suspender o campeonato, o que mais seria? Assim como a Fifa se tornou cúmplice de regimes autoritários na Rússia e no Catar, a Conmebol está agora se tornando cúmplice de Bolsonaro.
Que ambas as estratégias podem acabar não funcionando no fim das contas, é demonstrado pela oposição generalizada nas redes sociais e também entre os comentaristas da imprensa tradicional brasileira. A Copa América 2021 já foi renomeada para "Covid América" ou "Cova América". É um torneio no lugar errado, na hora errada.
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Philipp Lichterbeck é colunista e correspondente da DW no Brasil. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.