A Comissão Arns ingressou nesta semana com um "apelo urgente” na Organização das Nações Unidas (ONU) para denunciar graves violações de direitos humanos na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, que deixou 28 mortos na favela do Jacarezinho. O grupo é formado por personalidades do mundo jurídico, acadêmico e político, incluindo ex-ministros de Estado.
Integrantes da Comissão explicaram na última terça-feira (1) que a decisão de acionar a ONU foi motivada pela urgência de proteger a lisura da investigação e garantir a segurança das testemunhas do caso. A expectativa do grupo é que a petição intensifique a pressão por transparência na investigação e mudança de protocolos em operações policiais por parte do governo brasileiro.
O jurista Oscar Vilhena, diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, afirmou que, se mantida, a postura adotada pelo governo brasileiro com relação aos organismos multilaterais pode ter consequências políticas. Nos últimos anos, o país deixou de responder ao menos três cartas enviadas por relatores especiais da ONU cobrando providências sobre execuções extrajudiciais no país.
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"O país deveria cooperar voluntariamente com esse mecanismo, e não é isso que estamos vendo. A manutenção dessa postura pode gerar um constrangimento político grande e ter efeitos vinculantes em outros casos que tramitam na Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, afirmou.
A petição enviada pela Comissão foi endereçada ao mecanismo de Procedimentos Especiais da ONU, um sistema que reúne mais de 50 especialistas independentes em direitos humanos. Eles exercem mandatos pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas voltados a áreas específicas. Uma de suas funções é responder às notificações sobre violações que chegam à ONU.
No apelo enviado nesta semana, a Comissão Arns acionou as relatorias de Execuções Sumárias, Formas Contemporâneas de Racismo, Pessoas de Descendência Africana e Pobreza Extrema. De acordo com o protocolo, esses grupos irão trocar informações confidenciais com o governo brasileiro ao longo de três a seis meses. Em seguida, as respostas do país serão avaliadas por um especialista externo. Caso não sejam satisfatórias, o caso será levado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
"O resultado global desse processo, a partir da petição, é mostrar a capacidade global do Brasil de cooperar com a comunidade internacional. O país irá dizer se retoma um caminho de colaboração ou se continua no rumo para se tornar um pária internacional”, comenta o advogado Paulo Lugon Arantes, consultor internacional da Comissão Arns.
Atuação do MP é criticada
No dia seguinte à operação policial do Jacarezinho, o Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas cobrou uma investigação independente sobre o caso pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ). O porta-voz de Direitos Humanos da ONU, Rubert Colville, afirmou na ocasião que se observa "um histórico de uso desproporcional e desnecessário da força pela polícia" no país.
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Responsável por fiscalizar a atividade policial, o Ministério Público do Rio é alvo de críticas de organizações que atuam em defesa dos direitos humanos pela postura leniente adotada em relação a violações cometidas por agentes das polícias. Entre 2010 e 2015, cerca de 98% dos casos relacionados a "autos de resistência” — mortes provocadas por policiais — no Rio foram arquivados pelo MP e pelo Tribunal de Justiça.
Em maio, o MP-RJ pediu o arquivamento da investigação sobre a atuação de policiais militares na chacina ocorrida em fevereiro de 2019 no morro do Fallet-Fogueteiro, localizado no Centro do Rio. Dentro de uma casa, os agentes dispararam 107 tiros e mataram nove pessoas apontadas como suspeitas de associação ao tráfico de drogas. Outras quatro vítimas foram assassinadas em diferentes regiões da comunidade.
A jornalista Laura Greenhalgh, integrante da Comissão Arns, comentou que a postura do MP-RJ contraria uma promessa feita em reunião da qual participou com promotores do Ministério Público para tratar do caso Fallet-Fogueteiro no início da pandemia, na presença do ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, presidente da Comissão.
"Eles fizeram uma verdadeira exibição para nós, detalhando novas tecnologias de investigação, e garantiram que não veríamos uma repetição do caso Nova Brasília. Agora, o MP alega que a polícia agiu dentro do protocolo e as cenas foram totalmente desfeitas. Vemos um cenário idêntico no caso Jacarezinho, pois sabemos que as cenas do crime foram desfeitas imediatamente", comenta.
Plano de redução da letalidade
A chacina na comunidade Nova Brasília, a que Greenhalgh fez referência, resultou na condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2017. A sentença determinou que o país adotasse as medidas necessárias para que o estado do Rio de Janeiro estabelecesse metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial. Passados quatro anos, nenhuma providência efetiva foi tomada nesse sentido.
Em linha com a determinação da CIDH, juristas e entidades de direitos humanos reivindicaram a elaboração de um plano de redução da letalidade policial nos embargos de declaração da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como "ADPF das favelas", no Supremo Tribunal Federal (STF).
A ADPF voltou a ser debatida no STF, em sessão virtual, no dia 21 de maio. Foi no contexto dessa discussão que o ministro relator Edson Fachin limitou a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro a situações excepcionais, em junho do ano passado, sob o crivo do MP-RJ.
A decisão foi referendada pelo plenário do Supremo em agosto, mas seu efeito restritivo foi momentâneo. Entre setembro e outubro de 2020, os indicadores de letalidade policial voltaram a crescer exponencialmente e chegaram a patamares históricos no início deste ano.
Vilhena, da FGV, afirmou que a escolha do nome da operação no Jacarezinho ("Exceptis”) indica que o objetivo da polícia era "zombar” da determinação do Supremo. Após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, a sessão do último dia 21 foi suspensa.