O Chile encerrou no último domingo (16) um fim de semana histórico, com as mais importantes eleições desde 1970, quando foi eleito Salvador Allende, deposto por um golpe sangrento três anos depois. Os 14,9 milhões de chilenos aptos a votar elegem, pela primeira vez, os governadores das 16 regiões administrativas do país – antes indicados pela presidência da República –, além de prefeitos e vereadores.
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E consolidam, ainda, a superação do legado de Augusto Pinochet ao eleger os 155 integrantes da Convenção Constituinte que irá redigir a nova Carta Magna que substituirá a atual, de 1980, produto do regime neoliberal ditatorial liderado pelo general golpista. A assembleia constituinte é resultado de uma forte mobilização social na última década que culminou com as gigantescas manifestações populares de 2019.
Naquele ano, grandes mobilizações de mulheres, estudantes, jovens periféricos, indígenas e trabalhadores ocuparam as ruas. E assim obrigaram governo e partidos a construir um acordo pela convocação de um plebiscito para decidir se a população queria ou não uma nova Constituição. Realizado em outubro do ano passado, o plebiscito foi celebrado como uma vitória maiúscula.
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Embora o voto seja facultativo desde 2012, o plebiscito levou às urnas, em plena pandemia, 51% do eleitorado. Mais gente foi votar a favor de se construir uma nova Constituição do que as que elegeram Sebastián Piñera em 2017. Entretanto, o “grande acordo” nacional celebrado em novembro de 2019 foi visto com relativa frustração por parte dos movimentos sócias. Isso porque o dito acordo, entre outras limitações, determinou um quórum de dois terços dos constituintes.
“Esses dois terços são os principais inimigos da mudança constitucional, e isso faz com que alguns críticos, principalmente os defensores da assembleia nacional constituinte soberana, digam que essa é uma falsa constituinte. E que não vai ser possível superar completamente a Constituição do Pinochet”, diz a historiadora Joana Salém, doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo e professora da Faculdade Cásper Líbero.
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“Esse quórum de dois terços foi um acordo estabelecido em 15 de novembro de 2019 entre os partidos políticos, inclusive os de esquerda, que acabaram virando as costas para a profundidade e a radicalidade das forças das ruas”, observa Salém.
Pluralidade
De acordo com a professora, não existem pesquisas consistentes para medir o prognóstico para essas eleições constituintes. “Mas a sensação é que existe um arrefecimento daquela energia da mobilização de 2019 para cá. Inclusive porque a pandemia foi um golpe nos movimentos sociais, ao impedir a continuidade da pressão popular nas ruas contra o governo Piñera.
Mas também por conta de uma grande reestruturação pela qual a esquerda chilena tem passado, que é uma restauração cheia de divergências”, afirma a especialista. Ela vê ainda com preocupação o fato de, enquanto a direita se apresenta unida na eleição, com chapa única em torno da coalizão governista Chile Vamos, a oposição vai ao pleito fragmentada e dividida em várias chapas.
Independentes
“Entretanto, algo interessante a se observar é que nunca antes na história do Chile houve tantos candidatos, não só dos partidos políticos tradicionais, mas também de coletivos independentes. Então, essa possibilidade de se eleger independentes é vista como uma perspectiva democrática pela esquerda”, avalia a historiadora. “Isso porque permite à multiplicidade das vozes das ruas se expressar, não necessariamente via partidos – até porque os partidos da esquerda no Chile estão em crise. E parte dessa crise vem do fato de que muitos deles assinaram o acordo de novembro de 2019”, afirma.
Joana Salém admite que as candidaturas independentes mostram a amplitude do processo social e a vontade de mudança, de derrotar a Constituição de Pinochet. E consolidam a pluralidade e a representatividade dos movimentos sociais, feministas, indígenas, estudantes, ecológicos, como parte desse processo chileno. “Por outro lado, isso também pode ter um efeito colateral indesejado, que é o fato de pulverizar e fragmentar as candidaturas de esquerda.” O voto facultativo e o esfriamento do clima pós-mobilizações são fatores que podem preocupar.
Tamanho das eleições no Chile
População: 19 milhões
Eleitores: 14,9 milhões
Governos regionais: 16 (onde se agrupam 53 províncias)
Municípios (ou comunas): 346
Cadeiras constituintes: 155
Total de candidatos: 16.730
Votação impressa: cada eleitor depositará nas urnas quatro cédulas: para constituinte, governador, prefeito (alcaide das comunas) e vereador (conselheiros locais)
Paridade de gênero: 50% dos constituintes serão homens e 50%, mulheres
Indígenas: 17 cadeiras são reservadas aos povos indígenas, que representam 12% da população
Renovação: a Convenção Constituinte será formada por novos integrantes eleitos, sem obrigatoriedade de filiação partidária. Atuais parlamentares não poderão participar. A composição das cadeiras não será definida pela votação nominal dos candidatos, mas de maneira proporcional à soma dos votos das chapas
Prazo para elaboração da nova Constituição: um ano. Está previsto um plebiscito para referendar o novo texto. O acordo de 2019 não aprovou, porém, referendos para decidir sobre temas que tiverem peso social importantes mas que não venha a atingir 2/3 dos votos