“Vieram tempos de grandes mudanças e fervores, e a direita desatou a guerra suja. (…) Os funcionários não funcionavam, os comerciantes escondiam, os industriais sabotavam e os especuladores jogavam com a moeda. A esquerda, minoritária no Parlamento, se debatia na impotência; e os militares agiam por conta própria. Faltava de tudo: leite, verdura, peças, cigarros; e, mesmo assim, apesar das filas e da raiva, oitocentos mil trabalhadores desfilaram pelas ruas de Santiago, uma semana antes do fim. Essa multidão tinha as mãos vazias.” Eduardo Galeano
Desde a deposição da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, o Brasil voltou a viver um turbilhão político que não se via desde o regime militar. Essa intensa movimentação, que teve desdobramentos com a prisão do ex-presidente Lula e a eleição de Jair Bolsonaro, movimentou a música popular brasileira, que, como de hábito, passou a ecoar as demandas e inconformidades da sociedade brasileira. Não faltaram os que vieram à luta para bradar o seu grito, passando por inúmeras gerações, desde Chico Buarque e Elza Soares até Rafael Mike, Djonga, Karina Buhr e Pitty, passando por Adriana Calcanhotto e Zeca Baleiro. Seja como for, a música popular brasileira segue pródiga em canções políticas.
“2 de Junho” (MPB, 2020) – Adriana Calcanhotto
A frase te pega pela garganta. “País negro e racista” cabe melhor à bandeira verde-amarela do que o “ordem e progresso” que a estampa hoje, abolindo o princípio do lema formulado por Auguste Comte que Noel Rosa poetizou: “O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim…”. Tergiversações à parte, a voz ainda encorpada de Maria Bethânia (que interpretou a música em lives recentes e vai incluir a composição em seu novo álbum), aos 74 anos, segue vibrando como um metal que é despertado por um leve toque: “País negro e racista”. O que vem depois é bem pior, mais aterrador, pois nos lembra que essa inscrição, gravada com ferro em brasa no corpo dos escravos, representa a morte de uma criança negra, que Adriana Calcanhotto, autora da discursiva letra, compara a Ícaro, aquele do mito grego que morreu ao se aproximar do Sol.
“Negão Negra” (rap, 2020) – Flávio Renegado e Gabriel Moura
“Nunca foi fácil, nunca será/ Para povo preto do preconceito se libertar/ Sempre foi luta/ Sempre foi porrada/ Contra o racismo estrutural barra pesada”, entoa Elza Soares, eleita a Voz do Milênio pela BBC de Londres, em “Negão Negra”, rap de Flávio Renegado e Gabriel Moura. “Essa música é tão importante para os dias de hoje. Não é só para o Brasil, não, cara. É para o mundo todo”, alerta ela. No mês de maio, quando o estrangulamento de George Floyd, um homem negro, por um policial branco, desencadeou uma onda de protestos nos Estados Unidos, Elza se comoveu e disse: “Foi uma coisa que me machucou muito, mas eu só posso sentir e sofrer”. Em abril de 2021, em uma decisão que impactou todo mundo, o policial que assassinou Floyd foi condenado à prisão em seu país.
“Ladrão” (rap, 2019) – Djonga
Djonga não é dado a modéstia, ainda mais se ela for falsa. Com letras que exalam as cruas verdades de quem viveu na pele o que canta, o rapper se tornou o principal nome da música mineira contemporânea, extrapolando, inclusive, o território do rap. Prova disso é a presença de um samba de Jorge Aragão em seu mais recente disco, no caso, “Moleque Atrevido”. E é com a voz de Elis Regina interpretando trecho de “Romaria”, de Renato Teixeira, que Djonga encerra o elogiado álbum “Ladrão”. “A ideia do ‘Ladrão’ que dá nome ao disco é de resgate, de recuperar o que foi tirado do nosso povo e mostrar que a gente pode chegar longe”, explica. Na faixa-título, ele dispara: “Máquina de fazer rap bom/ Aquelas rima que você queria ter escrito”. Djonga é mineiro da capital BH.
“Boca de Lobo” (rap, 2018) – Criolo, Daniel Ganjaman e Nave
Mais de uma vez, Criolo passou pela mesma situação. Acompanhado por seu pai, ele entrava em um pequeno mercado no centro da cidade de São Paulo, e o fato se repetia. “Os seguranças ficavam nos seguindo até a gente perceber. O Brasil é um país racista”, declara. Foi esse constrangimento cotidiano que, aliado ao caso de Rafael Braga (condenado à prisão por portar uma garrafa de desinfetante durante as manifestações de junho de 2013), deu o primeiro disparo para “Boca de Lobo”, parceria com os músicos Daniel Ganjaman e Nave. A canção, com mais de 60 versos, traz citações que vão do líder religioso Dalai Lama ao escritor argelino Albert Camus, passando pelo sucesso cinematográfico “La La Land”. A música também ganhou um videoclipe com outras referências.
“As Caravanas” (MPB, 2017) – Chico Buarque
Era um projeto tão secreto que nem os envolvidos sabiam de tudo. O telefone de Rafael Mike tocou e, do outro lado da linha, o empresário do músico avisou que ele deveria ir correndo para os estúdios da gravadora Biscoito Fino, no Rio. Mike imediatamente entrou em contato com o seu produtor e pediu que ele levasse um celular, pois a bateria do seu aparelho estava acabando. Ainda brincou: “Vai que é o Chico Buarque que está lá?”. Mais tarde, a ousadia da traquinagem se confirmou como espécie de premonição. “De repente, entra o Chico Buarque na sala falando: ‘Cadê o Mike?’”, recorda. Logo, os dois começaram a conversar sobre futebol e a lamentar o momento do Fluminense, time do coração de ambos. Além disso, gravaram o videoclipe de “As Caravanas”, faixa que batizou o mais recente disco de Chico, de 2017, e que contou com uma batida de funk feita por Mike. A música retrata o abismo social.
“Sinhá” (MPB, 2011) – Chico Buarque e João Bosco
Questões sobre a formação da identidade nacional aparecem em “Sinhá”, composição que reúne os craques Chico Buarque e João Bosco, e que ganhou uma versão com matizes africanas que a aproxima do período escravocrata abordado na letra. “A música africana tem vigor suficiente para se fazer reverberar. Vez por outra, ela nos obriga a reverenciá-la diante de sua força e memória. Infelizmente, acredito que hoje nós estamos ainda mais distantes de deixarmos de ser um país racista. A escravidão ainda existe no Brasil, não só em sua versão original, como em outras formas aperfeiçoadas pela ‘casa grande’ atual”, lamenta João Bosco, que a regravou em 2019 no CD “Mano Que Zuera”.
“História pra Ninar Gente Grande” (samba-enredo, 2019) – Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Deivid Domenico, Tomaz Miranda, Mama, Ronie Oliveira, Marcio Bola e Danilo Firmino
Marina Íris estava ao lado de Marielle Franco (1979-2018) durante a campanha que a elegeu à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2016, com mais de 46 mil votos. Maria Bethânia lançou o álbum “Mangueira: A Menina dos Meus Olhos”, onde regravou o samba-enredo da Mangueira que saiu vencedor em 2019, “História pra Ninar Gente Grande”, que enaltece o legado de Marielle. O citado samba-enredo foi interpretado também por Marina Íris em uma sessão solene na Câmara dos Deputados, em Brasília, em março, um ano após a morte de Marielle. E também entrou como uma das faixas de “Voz Bandeira”, seu terceiro disco, dedicado à vereadora que ajudou a eleger, mas que ficou apenas um ano e dois meses no cargo. Além de Marielle, outras mulheres são exaltadas.
“Quem Mandou Matar Marielle?” (MPB, 2019) – Antônio Nóbrega e Wilson Freire
O pernambucano Antônio Nóbrega estava em frente à TV quando o assassinato da vereadora Marielle Franco foi anunciado, em março de 2018, em crime ainda hoje não elucidado. “Quem Mandou Matar Marielle?”, o questionamento que se tornou um emblema contra a impunidade, aparece em “Rima”, o primeiro álbum de Nóbrega em 12 anos. Parceria com Wilson Freire, a canção indaga: “Com a resistência dos gays, pardos, pretos e índios/ Escreveu a sua história, Brasil/ Pátria que te pariu, pergunta, já à flor da pele/ Quem mandou matar Marielle?”. “Estamos ficando tão acostumados a fatos dessa natureza que a gente, às vezes, releva. Esse acontecimento sempre me indignou de maneira intensa”, diz Nóbrega. “Quando as suspeitas se aproximam da alta cúpula do governo, a impressão é que surgem manobras para postergar o esclarecimento”, completa.
“Marielle Franco” (MPB, 2019) – Jorge Mautner
A morte da vereadora Marielle Franco (1979-2018), em crime que ainda não foi solucionado pela polícia passados mais de dois anos, acendeu em Jorge Mautner uma inspiração em forma de transe. “No dia em que ela foi assassinada, eu, com a emoção estraçalhada em meu coração, compus a letra e a música naquela mesma hora sinistra”, relembra. Batizada com o nome da ativista que se tornou símbolo da luta a favor de minorias, a faixa é a sexta das 14 do álbum “Não Há Abismo em que o Brasil Caiba”, de 2019, e traz os versos: “É preciso arrancar/ Da medula dos ossos/ Dos nervos até a epiderme da pele/ Este medonho cancro/ Que matou Anderson Gomes/ E que matou Marielle Franco”. “Marielle representa a democracia em plenitude, feita com justiça social”, exalta Mautner.
“Não Tá Mais de Graça” (pop, 2019) – Rafael Mike
Em “Não Tá Mais de Graça”, Rafael Mike retoma a história da anfitriã Elza Soares, e rebobina os versos emblemáticos de “A Carne” (2002) a fim de atualizar o sentido daquele protesto. “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça/ O que não valia nada agora vale uma tonelada”, dispara, no refrão. A mesma composição menciona Wakanda, lar do super-herói Pantera Negra, e a vereadora Marielle Franco, cujo brutal assassinato ainda não foi solucionado pelas autoridades do Estado. “Estou gritando contra o racismo há muito tempo, demos uma acordada, mas ainda não é suficiente”, reclama Elza.
“AmarElo” (rap, 2019) – Emicida, Felipe Vassão e DJ Juh
Majur, que se define como não binária, ambientou o clipe de “Africaniei” na sua cidade natal, Salvador. “É uma aula sobre a história do nosso povo. Somos um país laico que tem a diversidade como qualidade”, aponta. A carreira artística teve início aos cinco anos de idade, no Coral da Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador. Em junho de 2019, ela gravou com Emicida e Pabllo Vittar o clipe de “AmarElo”, que considera “um ‘start’ para o mundo”. “Nós três temos histórias de luta e resistência e encontramos um jeito de deixar uma mensagem de ânimo, utilizando a música como tecnologia de afeto”, avaliza. Capitaneada pelo rapper Emicida, a composição traz com sample da música “Sujeito de Sorte”, lançada por Belchior em 1976, no histórico disco “Alucinação”.
“Oração” (MPB, 2019) – Linn da Quebrada
Sem parar de produzir, Linn da Quebrada colocou nas plataformas digitais, em novembro de 2019, o single “Oração”. “Não encaramos o corpo com crueldade suficiente para entender suas potências, fragilidades, singularidades e pluralidades, por isso ele foi uniformizado e massificado para representar apenas homens e mulheres, de forma binária, anulando as complexidades”, declara. Em 2014, Linn foi diagnosticada com câncer no testículo. Após seis meses de quimioterapia, ela se curou em 2017. Criada como testemunha de Jeová, Linn reúne no videoclipe de “Oração” companheiras de luta como Liniker e Danna Lisboa. “Creio no sagrado e na religiosidade que inclui as vidas de todas nós, travestis, que foram compulsoriamente negadas”, diz ela, que aponta a raiva como forma de união de seus pares. “Criação e destruição caminham juntas. Acredito na raiva como impulsionadora de novos pilares”, conclui a compositora.
“Flutua” (pop, 2017) – Johnny Hooker
“Quando a Elza Soares faz um disco em que predominam as denúncias contra a violência de classe, sexual e de gênero, isso anuncia os tempos que estamos vivendo”, aponta o crítico musical Hugo Sukman. Na opinião da crítica musical Débora Nascimento, a profusão de uma música popular ativista se deve a uma “democratização dos meios de produção musical e divulgação”. “Foi aberto um gigantesco espaço a uma maior diversidade de autores e, como consequência, de temas. As músicas passaram a ser compostas e interpretadas por pessoas que vivem experiências relativas às suas condições no mundo”, analisa ela, que cita “Flutua”, de Johnny Hooker. “Se alguém quiser entender a homossexualidade no Brasil do final desta década, essa composição será referência”, diz. A faixa ganhou um belo videoclipe com a participação de Liniker.
“Proibido o Carnaval” (axé, 2019) – Daniela Mercury
Em junho de 2019, nos 50 anos do levante de Stonewall, enquanto a polícia de Nova York se desculpava pela violenta repressão contra homossexuais que gerou a revolta, a cantora Daniela Mercury aproveitava a celebração do icônico movimento de libertação gay para protagonizar com a jornalista e mulher Malu Verçosa, o primeiro beijo entre duas mulheres no Congresso Nacional. Esse misto de descontração e profundidade guiou a música “Proibido o Carnaval”. Ela causou alvoroço nas redes sociais em fevereiro, ao não poupar provocações para o conservadorismo de costumes. “Abra a porta desse armário/ Que não tem censura pra me segurar/ (…) Alegria cura, venha me beijar”, determina o refrão. Para completar, o videoclipe traz a participação especial de Caetano Veloso.
“Não Recomendado” (pop, 2014) – Caio Prado
Na faixa “Não Recomendado”, a cantora Elza Soares dispara contra a perseguição à comunidade LGBT. Os recentes episódios de censura na Bienal do Livro do Rio, com o recolhimento de exemplares a pedido do prefeito Marcelo Crivella, e o cancelamento de produções cinematográficas por parte da Ancine, a mando do presidente Jair Bolsonaro, têm incomodado a artista. “É um absurdo tão grande que eu não sei nem o que falar. Homofobia é crime, já conquistamos essa vitória. Deixem a liberdade do povo em paz”, desabafa. A música foi composta por Caio Prado, e também lançada por ele, em um disco solo de 2014.
“Maria da Vila Matilde” (pop rock, 2015) – Douglas Germano
Não é de hoje que Elza Soares representa a mulher sobrevivente, batalhadora, livre, dona de seus desejos e vaidades. Para coroar a carreira da nonagenária intérprete, nada melhor do que a canção “Maria da Vila Matilde”, peça que conjuga samba e música eletrônica, na veia da nova MPB, cheia de modernidade sem esquecer a tradição, bem ao estilo ousado e inquieto de Elza. Denúncia clara à violência contra a mulher, a canção serviu para suscitar debates e cumpriu com sua função social. Mais do que isso, exprimiu a arte de uma mulher talentosa, guerreira, determinada, que não abre mão de seus prazeres. A música ganhou uma versão do bloco feminista Sagrada Profana para o Carnaval de BH.
“Sangue Frio” (punk rock, 2019) – Karina Buhr
Um carro que levava uma família para um chá de bebê na zona Norte do Rio ser alvejado por 80 tiros disparados pelo Exército Brasileiro, matando um músico e um catador de lixo que buscou socorrer as vítimas, é um tremendo absurdo – que se torna ainda mais latente quando o Superior Tribunal Militar decide, por 11 votos a 3, libertar os nove agentes envolvidos na ação enquanto eles respondem ao processo. O caso aumentou a urgência para o novo disco de Karina Buhr. Em “Desmanche”, quarto álbum da carreira iniciada no mercado fonográfico em 2010, a baiana criada em Recife usa a primeira faixa, “Sangue Frio”, para repetir o óbvio de que tragédias dessa magnitude não podem acontecer e, muito menos, ficar impunes. O fato é que, num país onde o rompimento de uma barragem mata num só dia 270 pessoas e a execução de uma vereadora negra, bissexual e oriunda da favela permanece sem solução, qualquer hecatombe já parece banal.
“O Real Resiste” (pop rock, 2019) – Arnaldo Antunes
Uma das obras mais perturbadoras do espanhol Francisco Goya (1746-1828), pintada diante de seu horror com as guerras napoleônicas, traz a inscrição “O sono da razão produz monstros”. Foi “tomado por esse mesmo estado de perplexidade” que Arnaldo Antunes compôs, logo após o segundo turno das eleições presidenciais de 2018, “O Real Resiste”. A música dá nome a seu mais novo disco, já disponível nas plataformas digitais. Lançada como single em dezembro de 2019, ela teve o seu videoclipe retirado, sem explicações, da grade de programação da TV Brasil, mantida pelo governo federal. A letra, ácida, afirma em tom de ironia: “Miliciano não existe/ Torturador não existe/ Fundamentalista não existe/ Terraplanista não existe/ Monstro, vampiro, assombração/ O real resiste/ É só pesadelo, depois passa/ Múmia, zumbi, medo, depressão…”, canta.
“Ponta de Lança” (rap, 2017) – Rincon Sapiência
Rincon Sapiência começou a chamar atenção na cena com seu discurso moderno e contemporâneo. Uma das provas é o comentário mais “curtido” no link de seu primeiro álbum, disponibilizado no YouTube. “Gosto de ouvir Rincon Sapiência porque me sinto empoderada”, escreveu Ivy Vasconcelos, uma jovem fã do rapper paulistano que, ao surgir, ainda assinava Rincon X, MC Shato ou Manicongo, sendo que esta última alcunha aparece numa das faixas de “Galanga Livre” (2017), com a produção e 13 faixas autorais de Rincon. Ao longo do álbum, títulos como “Crime Bárbaro”, “A Coisa Tá Preta”, “Ostentação à Pobreza” e “Ponta de Lança” anunciam, de cara, o que vem por aí, reforçados por versos do tipo: “meu verso é livre/ ninguém me cancela/ tipo Mandela/ saindo da cela/ (…) partiu para o baile, fugiu da balela/ batemos tambores, eles: panela”.
“Noite Inteira” (rock, 2019) – Pitty, Martin e Gui Almeida
“Matriz”, o primeiro disco de inéditas da cantora Pitty em cinco anos traz a Bahia como grande tema. Entre os destaques, estão “Bicho Solto” e “Sol Quadrado”. Convidado, Lazzo Matumbi solta a voz em “Noite Inteira”, que repete um dos mantras das eleições presidenciais de 2018: “Respeite a existência ou espere resistência”. “Há o avanço do conservadorismo nos espaços de poder, mas a nova geração vem com outro chip. Muito mais fluidos, permeáveis, livres de amarras e rótulos impostos pelo senso comum. Muito mais preocupados em serem felizes e deixar que os outros sejam também, respeitando as escolhas alheias”, aponta Pitty, que foi voz ativa contra o atraso no programa “Saia Justa”.
“Jamais Serão” (rap, 2019) – Black Alien e Papatinho
Em 2019, Black Alien colocou na praça o álbum “Abaixo de Zero: Hello Hell”, o terceiro de uma carreira solo iniciada em 2004, permeada por longos hiatos. “Não sou obrigado a lançar disco para atender ao mercado”, declara ele. Livre do álcool e da cocaína, mas sem abrir mão da maconha, Gustavo Ribeiro é conhecido como Black Alien desde que surgiu, em 1993, com rimas aceleradas e inundadas de referências. Na faixa “Jamais Serão”, parceria com Papatinho, ele manda um recado direto: “Presidentes são temporários/ Meu despertar, temporão/ Música boa é pra sempre/ E esses otários jamais serão”. “O Brasil e suas mazelas estão num nível tenebroso de trevas, e só piora”, avalia o rapper.
“O Linchador” (MPB, 2019) – Zeca Baleiro, Rincon Sapiência e Fernando Abreu
A parceria tríplice “O Linchador”, coloca o dedo numa das chagas sociais do Brasil. Baseada em poema do maranhense Fernando Abreu, conterrâneo de Zeca Baleiro e com quem ele já havia composto “Alma Nova” e “Guru da Galera”, a música abre parceria com o rapper Rincon Sapiência, que participa dos vocais. Os assombrosos episódios narrados remontam a linchamentos ocorridos durante as rebeliões no presídio de Pedrinhas, em São Luís. “As propostas de segurança pública são só bravatas, os poderosos não estão nem aí para a população. A violência, a desordem e a pobreza são mantenedoras dos status dos poderosos, sempre foram”, diz o cantor, que não poupa atuais governantes.
“Forçar o Verão” (MPB, 2019) – Céu
Olhando para o Brasil e para o mundo, Céu confessa que considera o panorama “assustador”. A cantora trata do tema em “Forçar o Verão”. “Ouviram do Ipiranga/ Quem foi que ouviu, eu não vi/ Estava à sombra de um coqueiro/ No céu azul anil/ E o tempo fechou/ E ninguém viu/ Derrubando a rima/ Fez-se então frio no Brasil”, dizem os versos. “Me pego interessada pelo que acontece ao meu redor. É impossível fazer uma arte alheia à realidade, a não ser que você produza uma música de entretenimento, que também pode ser maravilhosa, mas, nós, como pessoas e artistas sensíveis, somos tocados pelo ambiente social”, afiança Céu.
“Trevas” (vanguarda, 2018) – Jards Macalé a partir de poema de Ezra Pound
Vértice principal do movimento modernista na poesia norte-americana do século XX, o controvertido poeta Ezra Pound (1885-1972) é uma das referências do disco “Besta Fera”, lançado por Jards Macalé em 2019. Macalé partiu do “Canto I”, de Pound, traduzido por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, para criar “Trevas”, que foi eleita para ganhar um videoclipe. O curioso é que em “Let´s Play That” (1994), Macalé adaptou “Luz”, ao partir de outro poema de Pound. “O mundo em 2019 está mais para trevas do que para luz. Nunca ouvi se falar tanto nessa palavra. Mas a treva também é o desconhecido. Pode haver esperança, a luz do fim. Até porque não adianta virem todas as forças passadistas. A História com agá maiúsculo está do nosso lado”, justifica.
“A Marchinha Psicótica de Dr. Soup” (vanguarda, 2007) – Júpiter Maçã
Rogério Skylab já cansou de se declarar “um cadáver dentro da música brasileira”, frase que ele justifica com o fato de sua extensa obra jamais ter despertado o interesse de intérpretes relevantes. Sem aderir completamente a nenhum movimento ou gênero, mantendo uma postura crítica diante desse cenário, o músico admite pontos de identificação com uma vasta e diversificada gama de artistas, dentre eles Tom Zé e Décio Pignatari. Com “A Marchinha Psicótica de Dr. Soup”, o músico se presta ao papel dos intérpretes que renegaram sua obra, e, mais do que homenagear Júpiter Maçã (1968-2015), coloca o dedo na ferida do estapafúrdio cenário político que tomou conta do país. Por fim, ele dá vazão a um grito incontido na garganta: “Lula Livre!”. Lançada pelo autor em 2007, a canção foi regravada por Skylab em 2019, quando Lula estava encarcerado em Curitiba acusado de corrupção e lavagem de dinheiro.
“Diário de Um Detento” (rap, 1997) – Mano Brown e Jocenir Prado
O presidente Jair Bolsonaro afirmou que pretendia conceder um indulto para perdoar policiais envolvidos em massacres, entre eles o do Carandiru, que em 1992 terminou com a morte de 111 detentos. A chacina inspirou a música com a qual o grupo Racionais MC’s faturou os prêmios de melhor vídeo de rap e videoclipe do ano no Video Music Brasil, da MTV, em 1998, além de conseguir a segunda colocação na lista que elegeu o melhor videoclipe brasileiro de todos os tempos, em votação promovida pelo jornal Folha de S. Paulo, em 2012. Lançada em “Sobrevivendo no Inferno” (1997), a faixa “Diário de um Detento”, com seus oito minutos de duração, é um desses capítulos históricos e controvertidos na trajetória do Racionais. A despeito da vontade do presidente, o Código Penal brasileiro vetaria os indultos, por se tratar de casos não encerrados judicialmente ou enquadrados na categoria de crimes hediondos.
“Feito Gente” (vanguarda, 1975) – Walter Franco
A canção “Feito Gente”, de Walter Franco – presente no segundo álbum de sua carreira, “Revolver”, de 1975 – foi incluída na trilha sonora da série “Os Dias Eram Assim”, transmitida pela Rede Globo em 2017. A produção retrata o período da ditadura militar no Brasil, que perdurou de 1964 a 1985. “Tenho uma história dentro desse contexto, como tantos outros. Minha família foi afetada diretamente pelo regime e teve problemas sérios. Meu pai (Cid Franco, poeta e vereador socialista) foi cassado e morreu sem saber que tinha sido anistiado. Então, representa um presente dos deuses a minha música estar ali para contar essa era das trevas, traumática. Porém, sem sentimento de rancor ou revanchismo ideológico. Sou pacifista”, declarou o artista, que morreu em 2019.
“Meu Caro Amigo” (choro, 1976) – Chico Buarque e Francis Hime
Em 1976, Francis Hime criou, com Chico Buarque, a célebre “Meu Caro Amigo”, carta em formato de música para o dramaturgo Augusto Boal (1931-2009), à época exilado pela ditadura militar brasileira em Lisboa. A clássica canção foi rebobinada por Hime em 2019, numa celebração à libertação do ex-presidente Lula, um dos assuntos recorrentes nos e-mails trocados entre o pianista e Chico Buarque. “Falamos muito sobre política, às vezes de futebol. A gente não sabe o dia de amanhã, a situação do Brasil é preocupante, tememos algo que parecia impossível, que é a volta da ditadura, a censura já está instalada”, denuncia. Apesar dos pesares, a música voltou a reunir os dois velhos amigos, que não compunham juntos desde a política e emblemática “Vai Passar”, do ano de 1984.
“Na Cara da Sociedade” (samba, 2019) – Serginho Meriti e Claudemir
O cenário de abandono e violência do Estado é o tema de “Na Cara da Sociedade”, crítica política e social em forma de samba, criada por Serginho Meriti e Claudemir. A letra dispara: “É o rico, é o pobre, é o mesmo perigo/ É a bala perdida, é a guerra, é o caos/ É a ignorância dos votos nos bons homens maus/ Sou carioca, mas sei que meu Rio não anda legal”, canta Zeca. “Acho que para o Brasil voltar a ter paz tem que parar de roubar e botar as crianças na escola”, opina. Saudoso de um tempo em que “existia mais rádio pra tocar”, ele assegura que “tem uma garotada bacana fazendo samba”, de que são exemplos Tereza Cristina e Xande de Pilares, e que o acompanham no disco “Mais Feliz”.
“A Culpa É do PT” (marchinha, 2019) – Marília Passos e Isis Passos
Passava das 11h da noite quando Isis telefonou para a mãe, Marília, com uma ideia que mudaria o destino de toda a família. Mas elas ainda não tinham consciência disso. No dia seguinte, as duas se encontraram pessoalmente, e, em cerca de meia hora, estava pronta “A Culpa É do PT”. Era janeiro de 2019, próximo do Carnaval, e, “para brincar e ver a reação dos amigos”, Isis postou a marchinha em seu perfil no Facebook. Logo em seguida, uma de suas amigas a enviou para um grupo formado só por mulheres no WhatsApp, intitulado “Ele Não”. A canção, recheada de ironias com frases que marcaram a última eleição presidencial, como “nossa bandeira jamais será vermelha” e “essa mamata vai acabar”, já tinha se tornado viral quando o youtuber Felipe Neto a compartilhou. Era o estouro definitivo. “A Culpa É do PT” foi indicada e venceu o Concurso de Marchinhas da rádio CBN. A “Família Passos” estava só começando suas folias.
“Só os Coxinhas” (funk, 2018) – Marina Lima e Antonio Cícero
Há um aforismo do poeta inglês T. S. Eliot (1888-1965) que diz: “Numa terra de fugitivos, aquele que vai na direção contrária parece estar fugindo”. Marina Lima tem se sentido uma forasteira em seu país. Foi essa a imagem que ela procurou transmitir na capa de seu disco “Novas Famílias”, em que aparece apenas de sutiã e com um lenço colorido sobre a boca e o nariz. Esse clima de contestação aparece na faixa escolhida pela artista para ganhar um videoclipe na rede. “Só os Coxinhas”, feita com o irmão Antonio Cícero, a coloca no controverso campo do funk. Nada que ela já não tenha experimentado quando gravou “Uma Noite e Meia” (de Renato Rocket) no LP “Virgem” (1987), e foi acusada de vulgarizar a sua arte. A canção tornou-se um hit e é presença garantida nos shows da artista.
*Bônus
“Pé na Jaca” (marchinha, 2020) – Bento Aroeira e Rubinho do Agogô
Durante a campanha eleitoral de 2018, o senador Cid Gomes, irmão de Ciro Gomes, presidenciável pelo PDT, se estranhou com apoiadores petistas e disparou: “O Lula tá preso, babaca!”. Da prisão, Lula reagiu com bom humor em uma entrevista, ao dizer: “Eu sei que estou preso, só não precisava chamar os outros de babaca”, e riu. Com a libertação do ex-presidente, o bordão se inverteu. Para completar, o documentário de Petra Costa sobre o impeachment de Dilma, “Democracia em Vertigem”, foi indicado ao Oscar. Os compositores Bento Aroeira e Rubinho do Agogô criaram a marchinha “Pé na Jaca” inspirados por essa trama. A interpretação é de Julie Amaral. A marchinha venceu o primeiro Concurso Satírico de Marchinhas de Ouro Preto, premiando-a em 2020.