Alimentação e poder

Por que o Leite Moça é tão presente nas receitas brasileiras?

Prato Cheio, podcast do O Joio e O Trigo, revela estratégias políticas que moldam escolhas alimentares dos brasileiros

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Os detalhes sobre a forma e estratégias utilizadas pela Nestlé para construir o império Leite Moça é o primeiro assunto esmiuçado pelo podcast "Prato Cheio" - Divulgação

Pudim de leite, beijinho, cremes, recheios e coberturas. Caso te perguntassem qual seria um produto essencial para essas receitas, você provavelmente responderia “Leite moça”.

Afinal, não há alguém que leia essas duas palavras juntas sem associá-las automaticamente à lata de leite condensado da Nestlé, presente há décadas nas cozinhas e em milhares de receitas. 

Mas, como esse imaginário, essa marca tão forte, foi construída e solidificada nos lares brasileiros? E a que custo? Esse é um dos temas investigados pela terceira temporada do Podcast Prato Cheio, do site O Joio e o Trigo

A produção conta com 8 episódios e tem como fio condutor a análise das relações entre o poder e a alimentação, investigadas durante meses por repórteres e roteiristas do Joio, único projeto brasileiro de jornalismo que investiga exclusivamente a alimentação e suas implicações políticas. 

Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, Victor Matioli, repórter do Joio e produtor do Prato Cheio, ressalta a importância de olhar para a comida que chega ao nosso prato como um ato político e entender que muitos de nossos hábitos alimentares são moldados e transformados constantemente pela indústria alimentícia.

“Todas as escolhas alimentares têm impactos sociais, impactos econômicos, que são gigantescos e extrapolam a nossa cozinha. Com certeza nossa alimentação está toda cercada de significados políticos”, reforça o jornalista.

Os detalhes sobre a forma e estratégias utilizadas pela Nestlé para construir o império Leite Moça é o primeiro assunto esmiuçado pelo podcast.

“É um caso muito simbólico de como uma empresa pode usar o seu poder financeiro, de marketing, até mesmo o poder afetivo que tem sobre o imaginário das pessoas, para construir hábitos”, adianta Matioli.

Os episódios do Prato Cheio vão ao ar sempre às terças-feiras às 16 horas e podem ser ouvidos pelo Youtube e em todos os tocadores digitais. 


Rótulo do "Leite Moça", da Nestlé, em 1922: Conheça a história por trás da marca que inseriu seu produto massivamente nas despensas brasileiras / Foto: Reprodução/O Joio e o Trigo

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato - Como o poder e a política se projetam em nossa alimentação?

Victor Matioli - Das mais diversas formas. Ultimamente tem se falado muito que comer é um ato político. Isso virou quase um lugar comum. As pessoas estão, cada vez mais, percebendo como o que a gente come, as escolhas alimentares que fazemos, estão embebidas em significados políticos.

Quando se escolhe se irá fazer a própria comida ou se irá pedir em algum restaurante, se será usado um aplicativo para isso ou não. Se faz as compras dos alimentos, onde elas são feitas. Se compra da feira, na quitandinha do bairro, ou se compra em uma grande rede de supermercados?

Todas essas escolhas alimentares têm impactos sociais, impactos econômicos, que são gigantescos e extrapolam a nossa cozinha.

Com certeza nossa alimentação está toda cercada de significados políticos e é isso que tentamos abordar nessa nova temporada do Prato Cheio.

É sair da cozinha e tentar entender os impactos da alimentação no mundo externo, longe do preparo doméstico dos alimentos.

Há um episódio específico do Prato Cheio que traz o caso emblemático do Leite Moça, da Nestlé, como um grande exemplo desse processo. É um produto que todo mundo conhece e considerado por muitos indispensável para fazer doces. Quais foram as estratégias usadas para estabelecer esse imaginário?

Esse é um caso muito curioso e, inclusive, é o episódio que abre essa temporada nova. Falamos como a Nestlé atuou para colocar o Leite Moça na despensa de todas as casas brasileiras. Pouca gente sabe, mas o leite condensado é um produto extremamente antigo, do século 19, que se popularizou nas guerras porque era prático, tinha durabilidade alta dentro da lata, então soldados conseguiam carregar a lata de um lado para o outro e fornecia as calorias necessárias para que continuassem preparados para a batalha.

Depois do fim da Guerra, a Nestlé tinha que fazer alguma coisa com toda essa produção enorme de Leite Condensado que tinham. A primeira destinação dada foi a alimentação infantil para bebês, recém-nascidos. O que hoje para nós parece surreal pensar, dar leite moça para um recém-nascido, era oferecido como mais seguro e mais completo do que o leite materno. Hoje sabemos que isso não faz o menor sentido e não tem cabimento nenhum. Mas essa foi a estratégia deles.

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Na década de 50 surgem as fórmulas infantis, os substitutos de fato para o leite materno, e o Leito Moça perde espaço. As pessoas não estavam mais confiando na história de dar leite condensado para os bebês com aquela quantidade enorme de açúcar. Eles precisam dar um jeito de enfiar esse produto em algum lugar.

Foi então que contrataram uma equipe de pessoas para criar receitas e modificar a doçaria brasileira para que bolos, doces, coberturas, para que o beijinho tradicional, por exemplo, para que o pudim de leite, todos eles, fossem feitos com Leite Moça. E não mais com leite ou outros ingredientes.

Eles viram que o produto tinha perdido mercado e foram buscar um novo mercado. Sempre no intuito de aumentar e manter as vendas elevadas que sempre tiveram.

É um caso muito simbólico de como uma empresa pode usar o seu poder financeiro, de marketing, até mesmo o poder afetivo que tem sobre o imaginário das pessoas, para construir hábitos. 

A atuação dessas empresas no front do marketing faz exatamente isso. Estabelece relações afetivas com as pessoas e cria hábitos alimentares que cada vez mais se afastam dos hábitos tradicionais.

A Nestlé tem estratégias muito interessantes como criar receitas em que as medidas eram a própria lata. Então, é uma lata de Leite Moça, uma lata de farinha. Tudo medido na própria lata.

Se pegarmos o livro de receita das avós, de pudim de leite, muito provavelmente o que está lá é o leite moça com todas as medidas tomadas pela própria lata. Tem vários aspectos dessa história que estão muito mais explicados no episódio do podcast.

A partir desse exemplo, qual o dano para a saúde pública da atuação dessas empresas, que seguem a lógica do lucro a qualquer coisa? No Brasil e no mundo. 

As empresas que usam estratégias parecidas como essas da Nestlé forjam hábitos alimentares e que acabam substituindo hábitos tradicionais. Temos comprovado em dados, por exemplo, com a Pesquisa de Orçamentos Familiares [POF] do IBGE, de que o brasileiro tem cada vez mais se afastado de uma alimentação tradicional.

Do nosso famoso arroz com feijão, com a salada de folhas verdes e tomate, com um pedacinho de carne. Enquanto tem se afastado cada vez mais desse tipo de alimentação, tem se aproximado dos alimentos ultraprocessados. Das preparações industriais, cheias de sal, gorduras, aditivos alimentares, que, como sabemos, trazem uma série de impactos negativos pra saúde das pessoas. 

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A atuação dessas empresas no front do marketing faz exatamente isso. Estabelece relações afetivas com as pessoas e cria hábitos alimentares que cada vez mais se afastam dos hábitos tradicionais.

As pessoas estão cada vez mais comendo diferente do que nossas avós comiam. Esses hábitos não existiam para as pessoas mais velhas. E a alimentação, que é uma coisa natural, intuitiva, acaba se tornando uma coisa burocrática.

A indústria de alimentos quer vender a ideia que todo produto alimentício é comida. E é saudável, bom, afetivo, faz bem pras pessoas e pro planeta. E sabemos que não é bem assim.

Quais os outros temas abordados nessa nova temporada do Prato Cheio?

Já publicamos cinco episódios e o fio condutor dessa temporada é, justamente, as relações de poder que se dão ao redor da alimentação. Tem esse caso da Nestlé que mostra como essa empresa poderosa pode mudar hábitos alimentares se utilizando dessa potência de marketing e dinheiro.

Depois, falamos como a comida de baixa qualidade, estragada, é usada como um vetor de tortura dentro das prisões brasileiras. Temos um episódio bastante ousado no qual tentamos abordar quais são as relações do consumo de carne com a construção da masculinidade.

Entrevistamos um antropólogo que nos disse que quando o homem está ali preparando um churrasco, por exemplo, uma atividade considerada masculina, o que está preparando, na verdade, é a própria masculinidade. Fazemos uma discussão sobre a masculinidade, a heteronormatividade e o consumo de animais mortos.

Depois, temos uma discussão sobre todo o preconceito voltado aos símbolos das religiões afrobrasileiras, especialmente a comida. Discutimos bastante o caso do acarajé, uma comida sacralizada, um alimento extremamente importante para as religiões brasileiras, que foi atacado, rejeitado, sofreu tentativas de apropriação por outras pessoas de fora.

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Falamos sobre a centralidade da comida para as religiões afrobrasileiras e como são os alimentos um dos alvos principais da intolerância e do preconceito religioso, do racismo religioso.

Temos um outro episódio que fala sobre as disputas de poder entre a monocultura e a cultura caipira. Pegamos um caso muito específico de São Luiz do Paraitinga, uma cidade do interior de São Paulo, onde a monocultura do Eucalipto avançou pela cidade e destruiu culturas tradicionais, afastou pessoas do campo e, junto com elas, levou embora a comida que era plantada naquele chão.

Os animais que viviam por ali. Essa é mais uma disputa de poder que tratamos. Depois ainda, nessa temporada, falamos sobre colonialismo, sobre arquitetura, sobre disputas de poder que travamos com a gente mesmo tendo a comunicação como o vetor dessa disputa.

O conteúdo do Prato Cheio explicita a necessidade de desmontarmos um olhar reducionista sobre a nutrição?

Exatamente. Esse sempre foi um dos objetivos do Prato Cheio e do Joio e o Trigo, de maneira geral. É algum dos temas centrais que abordamos, para que as pessoas parem de olhar os alimentos dessa maneira reducionista. Tendem a olhar para uma banana e associar aquilo ao potássio, como se só tivesse isso. A carne, à proteína. O arroz ao carboidrato.

O que tentamos fazer é desnaturalizar isso. Mostrar para as pessoas que, dentro da banana, tem muito mais coisa do que potássio. São milhares de anos de evolução para a construção daquele alimento, o que os especialistas chamam de matriz alimentar. Cada alimento é complexo e tem milhares de substâncias interagindo de uma forma específica.

Não é possível acreditar que uma cápsula de potássio é a mesma coisa que comer uma banana. Inclusive, nessa temporada, tratamos desse assunto a partir da teoria de um australiano, professor de políticas públicas na área alimentação, chamado Gyorgy Scrinis, autor de um livro chamado Nutricionismo. 

Que é justamente uma teoria que junta nutrição e reducionismo. Um termo que surge da junção das duas palavras e que demonstram essa visão que as pessoas têm sobre a alimentação. Esse é o tema do sétimo episódio da temporada.

As temporadas anteriores abordaram quais temas? 

Já publicamos 2 temporadas. São quase 40 episódios publicado no total, uma média de 30 min. cada um. Uma média de 20 horas de conteúdo disponível e, nosso site, Youtube, em todos os tocadores digitais.

Começamos falando dos temas mais caros pra gente, mais genéricos, como o que são os alimentos ultraprocessados, falamos sobre fome, sobre cultura alimentar, sobre alimentação. Na segunda temporada tratamos sobre a interferência da indústria, como as grandes empresas de alimentos interferem na maneira que comemos. 

Falamos sobre a pandemia, supermercados, essa ponta do varejo alimentar e como isso está relacionado com a maneira com que comemos. São diversos temas. Está tudo lá e já estamos pensando na próxima temporada. 

Edição: Leandro Melito