Estaleiros prontos, praticamente parados. Profissionais capacitados sem emprego. Obras, que poderiam ser feitas no Brasil, sendo realizadas em Singapura e na Coreia. Essa é a realidade que um grupo de engenheiros e executivos brasileiros da indústria naval pretende mudar.
O Projeto Emerge reúne 13 profissionais com décadas de experiência em estaleiros, que apresentarão em breve aos governadores e ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) uma proposta de revitalização do setor.
As articulações começaram em 2019. Depois de estudos e debates internos, o grupo se diz pronto para a etapa de “diálogo e convencimento da classe política.”
“A gente precisa, de alguma maneira, virar a página da Lava Jato. Porque a atividade não é corrupta. Tem que mudar essa imagem, recuperar a credibilidade”, afirma Reiqui Abe, graduado em Engenharia Mecânica Naval nos anos 1970 e um dos líderes do projeto.
Segundo pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) publicada em março, a Lava Jato custou 4,4 milhões de empregos no país, determinando o rompimento de contratos entre Petrobrás e empreiteiras e paralisando obras de infraestrutura pelo país.
O Brasil teria deixado “de arrecadar R$ 47,4 bilhões de impostos e R$ 20,3 bilhões em contribuições sobre a folha, além de ter reduzido a massa salarial do país em R$ 85,8 bilhões.”
::Dieese: Lava Jato tirou do país 4,4 milhões de empregos e R$ 172 bi em investimentos::
Os setores de petróleo, gás e construção civil foram os mais afetados, conforme o estudo do Dieese. A indústria naval entra nessa conta, uma vez que os estaleiros eram usados principalmente para reparo e construção de embarcações e plataformas e para atividades logísticas relacionadas à extração e refino de petróleo.
Em dois anos, entre 2014 e 2016, o número de empregos no segmento naval caiu de 71,5 mil para 40,2 mil, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
No dia 28 de janeiro de 2015, dez meses após a deflagração da Lava Jato, o governo Dilma Rousseff (PT) fez o primeiro alerta oficial para os prejuízos que a operação poderia causar à economia. O então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defendeu naquele dia, em entrevista coletiva, que os corruptos fossem punidos “com o rigor da lei”, sem que isso atrapalhasse a “vida econômica dos brasileiros”.
Sérgio Moro não esperou nem 24 horas para dar uma resposta à altura. Em ofício entregue ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o juiz de primeira instância insistiu pela suspensão imediata dos contratos da Petrobras com grandes empresas – mesmo aquelas que tinham obras em andamento, ou quase finalizadas.
Por uma nova política industrial
Filho de pais japoneses, Reiqui Abe conta que já viu o setor oscilar várias vezes no Brasil. Na década de 1970, o país chegou a ser o 2º maior construtor naval do mundo.
O engenheiro começou a carreira no antigo estaleiro da Ishibras, hoje chamado de Inhaúma, no bairro do Caju, no Rio de Janeiro (RJ). Depois de alçar ao posto de diretor superintendente, trabalhou sete anos em um estaleiro de Itajaí (SC) e outros dez em Recife (PE), a partir de 2006.
“O [ex-presidente] Lula que incentivou esse projeto em Pernambuco”, lembra. “Mas a Lava Jato prejudicou bastante a atividade, com consequências dentro e fora do país, afetando muito a nossa imagem.”
Na avaliação do especialista, o setor só será alavancado novamente com uma reorientação nos rumos da equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes. Hoje, em vez do investimento em logística e infraestrutura, o Ministério tem priorizado programas de concessão e privatização, ignorando o papel do Estado como indutor do desenvolvimento..
Reiqui Abe admite que o Projeto Emerge pode soar idealista, mas reafirma que não há outra saída.
“O que a precisa é mudar a política industrial do atual governo. A atividade naval pode ajudar muito, criando empregos. E mais: vai ter que fabricar motores, bombas, e isso movimenta a indústria como um todo. A gente vai sensibilizar a classe política para dar emprego e fortalecer a indústria através da atividade naval”, diz.
Filme repetido
Uma das organizações apoiadoras do Projeto Emerge é a Associação Brasileira de Engenharia de Construção Onshore e Offshore Naval (Abecom), que abrange mais de oito mil profissionais.
O engenheiro Mauricio Almeida, que fundou a associação em 2016, tem 65 anos “e 46 de beira de cais.”
Responsável pela construção do primeiro casco de uma plataforma semisubmersível para extração de petróleo no Brasil, ele atuou nos estaleiros Mauá e Mac Laren, em Niterói (RJ).
“Eu não sou contra a Lava Jato, só acho que não deveriam ter tirado as obras do Brasil. O que está errado é passar 100% das obras para a Ásia porque os executivos dos estaleiros roubaram. Na Renault, no Japão, o principal executivo foi acusado de roubo e corrupção, e lá não fecharam as portas impedindo que se comprasse carro”, lembra.
“A Lava Jato contaminou o nosso mercado. Os acionistas começaram a cortar custos e acabaram demitindo, primeiro, quem tinha os maiores salários. Eu fui demitido em 17 de fevereiro de 2016 por ser um dos principais executivos da empresa na época”, acrescenta.
Segundo o engenheiro, a Lava Jato repetiu uma fórmula que já tinha produzido efeitos desastrosos na década de 1980. À época, investigações de desvio de dinheiro na Superintendência Nacional da Marinha Mercante (Sunaman) mancharam a imagem do setor e paralisaram obras pelo Brasil.
Da lanchonete ao Uber
“Depois do caso Sunaman, a maioria dos engenheiros que foram demitidos abriam lanchonetes para vender suco. Hoje em dia, cansei de entrar em carro da Uber e ver que o motorista é um colega, gerente de condicionamento, gerente de suprimento, cargos altamente especializados”, relata Almeida.
“Novamente, nós empregados fomos punidos. É um absurdo. Algumas pessoas roubaram? Então pune essas pessoas, mete na cadeia. O que não pode é um estaleiro com 15 mil pessoas botar todo mundo na rua, pegar as obras todas e levar para a China, para Singapura, para outros países”, acrescenta.
:: Obra parada, trabalhador demitido: quem paga a conta da Lava Jato são os mais pobres ::
O engenheiro diz que o mercado só começou a se reerguer, após o caso Sunaman, em 1996, abrindo caminho para o novo boom, durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
“Na época do PT, a frase era a seguinte: se o chinês, o singapurense quiserem fazer nossas obras, vão ter que fazer aqui. Com isso, trouxeram duas grandes empresas de Singapura, que reabriram estaleiros no Brasil. Aí, o número de empregos saltou imediatamente de 20 mil para 80 mil”, relembra.
O discurso de que produzir fora do Brasil era mais barato não se concretizou. O dólar mais que dobrou desde 2017, e muitas obras contratadas naquele ano saíram mais caro do que o esperado.
Obrigação moral
“A Petrobras lançou um plano de US$ 4,6 bilhões para descomissionar [desativar e desmontar] 18 plataformas. Ainda estamos tendo que pagar outros países para pagar esse trabalho que a gente sabe fazer”, lamenta Almeida.
Na lista de prejuízos pós-Lava Jato, soma-se o preço pago pela Petrobras para manter estaleiros parados. Conforme informação repassada em off ao Brasil de Fato, só o Inhaúma, no Caju, custa R$ 5 milhões ao mês.
“Se reabrirem o estaleiro Inhaúma, eu garanto que em três meses ele está funcionando de novo. Porque os velhinhos, como eu, vão lá transferir esse conhecimento pra juventude, que vai aplicar isso de forma mais informatizada, com novas tecnologias”, projeta.
Hoje, Almeida tem uma empresa de consultoria e atua como perito judicial, mas não se conforma com o sucateamento de estaleiros pelo brasil.
“Tenho obrigação moral de fazer alguma coisa pela galera mais jovem que vem aí. Não posso morrer e levar minha experiência para o caixão. Não tenho mais idade para subir em andaime, tocar uma obra, mas posso passar minha experiência adiante, dar diretrizes e passar informações”, completa o engenheiro.
Paralelamente às conversas com os governos estadual e federal, Almeida considera urgente o reinvestimento na Escola Técnica do Arsenal de Marinha, responsável pela formação dele e de milhares de profissionais que atuaram em estaleiros no Brasil.
Por meio do Projeto Emerge e da Abecom, ele espera debater o tema com o atual comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, que também foi aluno da Escola.
Pontapé inicial
Embora a Lava Jato tenha paralisado atividades de estaleiros em vários pontos do litoral brasileiro, Reiqui Abe diz que o Projeto Emerge concentrará suas ações inicialmente no Rio de Janeiro.
“Como no passado o núcleo da atividade naval foi o Rio, a ideia é começar aqui, para que a partir desse exemplo sejam reativados o Estaleiro Atlântico Sul (EAS), assim como o de Rio Grande [da empresa Engevix], da Bahia [Odebrecht], e todos os demais”, explica.
:: É possível combater a corrupção sem destruir a economia? ::
Parte da esperança do grupo reside em uma sinalização do novo governador Cláudio Castro (PSC), substituto de Wilson Witzel (PSC).
No discurso de posse, no início de maio, Castro prometeu dialogar com o governo federal sobre a criação de emprego no estado, a partir da reativação dos estaleiros parados.
Conforme a estimativa de Reiqui Abe, a concretização dessa promessa significaria imediatamente 30 mil empregos diretos e quase 100 mil indiretos.
“E sem muito investimento. Porque no Caju tem estaleiro pronto. Em Niterói, também”, ressalta.
“Não adianta querer convencer que nós vamos construir mais barato que os chineses, porque não é possível, devido ao volume de subsídios que eles têm. O que a gente precisa é mostrar o potencial do pré-sal, o tamanho da nossa demanda. Hoje estamos gerando emprego na Coreia, em Singapura, enquanto nós temos 14 milhões de desempregados”, completa o engenheiro.
Mesmo sem sinalizações do governo federal nesse sentido, Mauricio Almeida também é otimista e prevê um novo ciclo ascendente: “Eu estou vendo uma pontinha, uma possibilidade. Espero que dessa vez seja um processo mais constante e duradouro”, finaliza.
Edição: Vinícius Segalla