Com possibilidade de ser votado no plenário do Senado na semana que vem, o Projeto de Lei (PL) 510/2021, que flexibiliza normas de regularização fundiária e foi idealizado pela bancada ruralista, segue no alvo de especialistas que atuam na defesa ambiental.
O tema é um dos mais candentes e desperta uma série de preocupações também entre entidades da sociedade civil que atuam na pauta agrária, alvo de destaque na agenda do governo Bolsonaro.
O PL permite a titulação de áreas desmatadas ilegalmente sem obrigatoriedade de assinatura prévia de instrumento de regularização de passivo ambiental e amplia a possibilidade de extinção de projetos de assentamento para aplicação das regras de privatização de terras públicas, entre outros pontos.
Também anistia o crime de invasão de terra pública para pessoas que tenham se apossado ilegalmente da área entre o final de 2011 e o ano de 2014.
Em audiência publica no Senado nesta quinta (29), o autor do PL, senador Irajá (PSD-TO), disse que o objetivo do projeto seria “corrigir injustiças históricas” com pessoas que aguardam o título definitivo da terra.
O discurso é semelhante ao de interlocutores do governo Bolsonaro que agem junto ao Legislativo para tentar emplacar a pauta. Ao participar do mesmo debate, o secretário Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura (Mapa), Nabhan Garcia, chegou a afirmar que o PL teria potencial pra combater a grilagem, o garimpo ilegal e o desmatamento por facilitar a concessão do título de terras aos agentes desses crimes.
“O PL vai acabar com essa história e vai realmente dar título a quem merece porque ninguém vai lá se beneficiar de uma forma irregular. Precisamos dar mais dignidade a essas pessoas”, disse. Garcia insiste que, a partir da medida, o Estado poderia ter “o RG” dessas pessoas.
:: Leia também: Ricardo Salles: 13 fatos que fazem do ministro ameaça ao meio ambiente do planeta ::
Para especialistas da área ambiental, o discurso carece de nexo. A pesquisadora Brenda Brito, do instituto Imazon, por exemplo, afirma que a alegação não tem base jurídica nem científica.
“Não existe, na legislação ambiental brasileira, a exigência de que uma pessoa só pode ser punida por praticar um dano ambiental se ela for dona do imóvel, até porque a gente tem a previsão do crime de desmatar floresta pública. Então, não faz sentido dizer que não se pode punir quem pratica esse desmatamento porque essa pessoa não é dona dessa área”.
O Imazon também aponta que diferentes estudos indicam já ser possível a identificação de CNPJs e CPFs de pessoas ligadas a desmatamentos ilegais em 75% dos casos com base em informações disponíveis em bancos de dados governamentais, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR).
“Então, se houver essa intenção de punir o crime ambiental, basta utilizar essas informações. Outro ponto é que as florestas que estão sendo desmatadas têm donos, e somos todos nós. A manutenção delas como públicas é fundamental”, afirmou a pesquisadora, ao mencionar que as terras públicas têm maior nível de preservação ambiental, especialmente as áreas indígenas e Unidades de Conservação (UCs).
:: Leia também: Estrangeiros controlam ao menos 17 mil hectares de unidades de conservação no Brasil ::
Especialistas e movimentos populares também entendem que, ao liberar a titulação de terras públicas invadidas, o projeto desmerece a necessidade de o Estado retomar o controle dessas áreas.
“Quando se trata de regularizar patrimônio e terras publicas, que são de todos nós brasileiros, é preciso ter uma atenção muito especial [com o tema], senão a gente acaba cedendo aquilo que é da União pra poucas pessoas”, afirma o secretário de Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Alair Luiz dos Santos.
Vistoria
Também suscita controvérsias o trecho do PL que acaba com a necessidade de vistoria para o repasse de terras a ocupantes de áreas de até 2.500 hectares, consideradas de grande porte. A argumentação da bancada ruralista é de que o procedimento atrapalha a regularização e de que sua dispensa seria via de solução para desburocratizar o processo.
Os especialistas apontam, no entanto, que, já é possível contar, entre outras coisas, com imagens de satélite para agilizar o processo de titulação do país. Também alertam que medidas como o fim da vistoria legitimam a grilagem e estimulam novas ocupações ilegais. Foi o que afirmou, por exemplo, a ONG Coalizão Brasil, em nota pública veiculada na última quarta-feira (28).
A pesquisadora do Imazon, Brenda Brito, acrescenta ainda o risco de ampliação de conflitos, tema de destaque no Brasil. Em 2019, por exemplo, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 1.833 conflitos no campo, o número mais elevado considerando os cinco anos anteriores, além de 23% maior que o ocorrido em 2018.
:: Leia também: Com Bolsonaro, número de conflitos no campo é o maior dos últimos 10 anos ::
O dado reúne disputas trabalhistas e conflitos por água e terra. No caso particular deste último, foram 1.254 ocorrências, um recorde desde 1985, ano em que a CPT iniciou a série histórica. Essas disputas afetaram a vida de mais de 859 mil pessoas. Os especialistas projetam que o eventual fim das vistorias tende a ampliar esse patamar.
“A legislação exige ocupação mansa e pacífica, mas não é possível garantir isso sem vistoria. Aumentar o tamanho dos imóveis que têm dispensa de vistoria ou até excluir [a exigência] aumenta o risco de titulação em áreas de conflito, e conflito não traz segurança jurídica, que é o que se pretende no final”, argumenta Brenda.
O Imazon afirma ainda que o PL contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que, ao julgar uma legislação sobre o tema, consolidou o entendimento de que a vistoria só deve ser dispensada para imóveis de até 4 módulos fiscais e se houver uma checagem detalhada de dados que deem a garantia de que o titular da área não está ferindo outros direitos asseguradas em lei.
PL 510
O PL 510/2021 é uma tentativa da bancada ruralista de resgatar o espírito da Medida Provisória (MP) 910, apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A MP caducou em maio de 2020 sem ser votada no Congresso Nacional após pressão política e popular pela sua não aprovação. Inconformados com o destino dado ao texto, ruralistas e aliados reeditaram cerca de 80% da MP, trazendo-os para o PL.
Edição: Poliana Dallabrida