Os Estados são cúmplices da expansão do uso de agrotóxicos, que causam danos ao meio ambiente, aos trabalhadores e consumidores.
Essa é uma das conclusões do relatório Agrotóxicos na América Latina: Violações Contra o Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas, que se debruçou sobre o tema em oito países do continente – Brasil, Colômbia, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Paraguai.
O material, com 108 páginas, foi lançado nesta terça-feira (27) pela Fian Brasil, organização pelo direito humano à alimentação e à nutrição adequadas.
O evento de lançamento, transmitido ao vivo pela internet, reuniu pesquisadores que colaboraram para a produção do relatório e teve entre os participantes Marcos Orellana, relator especial das Nações Unidas sobre substâncias tóxicas e perigosas.
“Estamos vivendo, assim como uma crise climática, uma crise tóxica, que não recebe a devida atenção”, disse Orellana, enaltecendo a importância do material.
Para o relator especial das Nações Unidas, o cenário apresentado configura uma “tremenda injustiça ambiental”, e “a imposição dos riscos e impactos aos grupos vulneráveis é manifesta.”
Orellana chamou atenção ainda para a “ausência de um instrumento global que faça frente ao avanço dos agrotóxicos perigosos”.
“A defesa do direito à alimentação torna-se um escudo moral diante dessa ameaça”, afirmou. “Não é só o direito de não passar fome, mas o direito a um sistema alimentar adequado, sustentável.”
O conceito de DHANA
O primeiro capítulo da publicação explica o conceito de Direito Humano a uma Alimentação e Nutrição Adequadas (DHANA) e detalha como o uso indiscriminado de agrotóxicos viola esse direito na América Latina.
O conceito de DHANA é apresentado sob suas diferentes dimensões: disponibilidade, acessibilidade, adequação, soberania alimentar, capacidades nutricionais e elementos estruturais de etnia e gênero.
O segundo capítulo, escrito pelo pesquisador Leonardo Melgarejo, contém uma análise técnica e política do tema, expondo as causas e os impactos da expansão do uso de pesticidas.
Melgarejo é engenheiro agrônomo, mestre em Economia Rural, doutor em Engenharia de Produção e colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.
Padrão na atuação das corporações
“Observa-se em todos os países uma uniformização de tendências, associadas ao papel reservado à América Latina como produtora, principalmente de transgênicos, mas do agronegócio em geral”, disse o pesquisador.
“A distinção entre os países é meramente a velocidade com que isso ocorre”, acrescentou, durante o evento de lançamento do relatório.
As consequências desse processo são amplificadas por manobras como mudanças nos critérios de toxicidade e tentativas de flexibilizar as leis protetivas.
“A dependência dos direitos de patentes leva a uma crescente influência do interesse empresarial sobre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso se traduz em populações de insetos e plantas que já não se controlam”, alertou Melgarejo.
“Há uma seleção negativa que expande o problema e que leva à abertura de mercado para novas gerações de plantas geneticamente modificadas e transgênicos”, completou.
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O terceiro e último capítulo é de autoria de Juan Carlos Morales González, médico e diretor executivo da Fian na Colômbia. O autor enfatizou as dificuldades do Estado para fazer frente ao agronegócio e listou alternativas.
No lançamento, González ressaltou que os Estados estão violando tratados internacionais de direitos humanos e suas obrigações.
“Há grande cumplicidade dos nossos Estados com a expansão do uso de agrotóxicos e com as violações de direitos associadas”, disse. “Essa cumplicidade se materializa na fidelidade ao modelo agroexportador, espoliador e destruidor da vida, e na conveniência suspeita com corporações do setor.”
Entre as consequências desse processo, estão a perda de soberania, colapso ecológico, danos à saúde de trabalhadores, aumento da dependência de importação de alimentos e remoção de comunidades rurais.
Divisão internacional do trabalho
Uma das alternativas propostas por González é ampliar a pressão sobre os países fabricantes de veneno, para ao menos evitar que as substâncias tóxicas mais perigosas sigam sendo comercializadas sem nenhum tipo de debate ético.
Outro apelo foi pela criação de uma rede internacional de proteção a cientistas, ativistas e organizações sociais que denunciam os efeitos negativos dos agrotóxicos e sofrem ameaças constantes.
Um dos casos mais recentes é o de Larissa Bombardi, pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), que decidiu deixar o país em março após sofrer ameaças.
Bombardi também participou do evento de lançamento do relatório e reforçou as desigualdades globais associadas ao tema.
“Os países da América Latina exportam produtos de baixíssimo valor agregado e importam produtos de alta tecnologia. A velha divisão internacional do trabalho continua sendo uma realidade”, disse.
“Nessa sociedade de economia mundializada, o alimento perde seu caráter enquanto valor de uso, nutrição humana, e se transforma em uma mercadoria como outra qualquer, como se não estivesse relacionado com a nossa condição mais básica de relação com o planeta”, acrescentou.
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A pesquisadora lembrou que os maiores fabricantes de veneno estão na China, nos Estados Unidos e na União Europeia.
“Hoje, cinco empresas controlam 70% das vendas mundiais de agrotóxicos. E os territórios da América Latina se transformaram em um campo sem fim de soja. Temos ‘uma Alemanha e meia’ plantada, só de soja transgênica, no Mercosul”, comparou.
A contradição é que países produtores de veneno têm regras muito mais restritivas para sua aplicação. O caso do glifosato, agrotóxico mais usado em território nacional, é emblemático: a quantidade permitida para aplicação no Brasil é 5 mil vezes maior que na União Europeia.
Bombardi recuperou estudos anteriores para ilustrar, em números, os danos causados pelos pesticidas. Entre os dados mais reveladores, está o número de bebês de 0 a 12 meses que sofreram intoxicação – 542 casos, de 2010 a 2019.
Agrotóxico como arma
Giovani Leão, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), relatou durante o lançamento do relatório que o agrotóxico vem sendo usado para expulsar populações de seus territórios na zona da mata, em Pernambuco.
Predominam há mais de três séculos, na região, as monoculturas de cana de açúcar. “Desde a colonização, isso tem significado concentração de terra e das riquezas, trabalho degradante e escravo, destruição da Mata Atlântica e, mais recentemente, uso intensivo de agrotóxicos”, descreveu.
A zona da mata pernambucana é palco de disputas entre famílias de posseiros, que vivem há décadas na região, contra empresas imobiliárias em terras de usinas falidas, com débitos com trabalhadores, com o estado e o governo federal.
“Na comunidade de Fervedouro, no município de Jaqueira, sítios de banana de 10, 15 anos, foram destruídos por essas empresas. Os pés foram cortados e, no lugar, foi jogado veneno, para que eles não voltassem a crescer”, relatou Leão.
“Em outra comunidade, Batateira, a empresa, além de destruir a lavoura, também lançou veneno sobre fragmentos da Mata Atlântica, para que árvores não voltassem a germinar”, completou.
O integrante da CPT lembrou ainda um caso que virou notícia, em abril de 2020: um helicóptero realizou pulverização aérea, atingindo casas de agricultores em plena pandemia. Alguns foram atingidos diretamente pelo veneno, e passaram a relatar náusea, tontura, vômito e dor de cabeça.
“Foram feitas denúncias aos órgãos públicos e à Justiça, mas nenhuma ação concreta foi tomada para que evitar que essa estratégia continue. Os órgãos ambientais sequer foram à área atingida para verificar, fiscalizar. A impunidade e a omissão do Estado alimentam essa prática danosa contra as comunidades e o meio ambiente”, finalizou.
Nos dois primeiros anos de mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o Brasil quebrou recordes de liberação de novos agrotóxicos. Em 2019, foram 474. Em 2020, o número subiu para 493.
Edição: Leandro Melito