Veneno

Cerca de 600 milhões de litros de agrotóxicos são lançados no Cerrado por ano, diz pesquisa

Berço das águas, o bioma cumpre o papel de uma espécie de caixa d’água para todo o país

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |
Comunidades quilombolas consomem água envenenada, que também apodrece os alimentos. - Leandro dos Santos

O Cerrado abriga nascentes de importantes rios brasileiros, no entanto, além de sofrer com altos índices de desmatamento, tem sofrido ainda um envenenamento sem precedentes, com mais de 600 milhões de litros de agrotóxicos despejados, o que significa mais de 70% do total consumido no país no ano de 2018, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em parceria com a Fiocruz, estudam e denunciam as consequências dessa triste realidade, que traz outros dados alarmantes expostos na publicação “Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado”.

“Isso causa o quê nas famílias das comunidades? Preferencialmente, processos alérgicos, processos intestinais, e muitos desses agrotóxicos, como os glifosatos, já classificamos como carcinogênicos e podem levar até à morte. Nós temos casos de crianças com feridas expostas, coceiras... e nos traz uma preocupação, além da questão do meio ambiente, porque eles não podem usar essa água para consumo próprio”, explica a pesquisadora do Instituto Federal do Maranhão (IFMA), Georgiana Marques.


Contraste entre preservação do Quilombo Cocalinho e monocultivos de milho e soja no Maranhão. / Reprodução / Ecocídio no Cerrado

Os estudos apontam que o uso indiscriminado de agrotóxicos, especialmente nas regiões de intensificação de atividades do agronegócio, tem sido utilizado ainda como potenciais armas químicas, uma vez que impedem a produção e reprodução da vida nos territórios.

“Então o uso indiscriminado de agrotóxicos no Maranhão precisa urgentemente de junções acadêmicas com as comunidades, somando aos movimentos sociais, para que sejam identificados os compostos utilizados, sendo que alguns podem nem ser mais regulamentados dentro do Brasil ou internacionalmente e procurar políticas públicas que possam impedir ou melhorar o uso”, complementa Georgiana.


Sem alternativas, as famílias consomem água envenenada, abastecem os animais e as lavouras. / Reprodução / Ecocídio no Cerrado

Área de intensa expansão do agronegócio e terceiro estado no índice de violências no campo, o Maranhão compõe a fronteira agrícola do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e é destaque nas pesquisas.

“A pesquisa mostra que as pessoas estão tomando aguas contaminadas, literalmente estão tomando veneno todos os dias. Isso é causado pelo agronegócio, pelas plantações de soja e eucalipto que se espalham por todo o Maranhão, assim como em outras regiões do Cerrado, em especial no corredor MATOPIBA”, denuncia Ariana Gomes, da Rede Maranhense de Agroecologia (RAMA).

No Quilombo Cocalinho, município de Parnarama, no Maranhão, foram detectados 9 tipos de agrotóxicos nas águas da comunidade em uma única amostra coletada – mistura essa que é ainda mais perigosa do que um produto isolado. O território quilombola é reconhecido pela Fundação Cultural Palmares desde 2014, mas ainda não tem a titularização, o que mantém a comunidade em situação de maior insegurança e conflitos. 


Extrativista e líder comunitária do Quilombo Cocalinho, Raimunda Nonata denuncia a 'chuva de veneno' sofrida. / Reprodução / Ecocídio no Cerrado

“A gente não sabe mais por onde correr, qual a solução buscar para esse problema, porque a gente vê a nível nacional, a nível estadual, a ganância desses plantadores de milho, de soja (...) essa pulverização que eles fazem aérea contaminam nossa plantação e nossas águas, nos lençóis freáticos como nas caixas d’água, nas cisternas, isso tudo contamina”, explica Raimunda Nonata, liderança quilombola de Cocalinho.

Quebradeira de coco babaçu, Nonata alerta que se a água está adoecida, o meio ambiente está adoecido, e por isso também as roças, os animais e as pessoas.

“As águas dos açudes, dos poços cacimbões, dos poços artesianos, todas essas águas estão contaminadas com esses agrotóxicos, e a gente não tem outra alterativa a não ser consumir essa água, com esses agrotóxicos. Está difícil a nossa sobrevivência dentro do território”.

Diante dessa realidade, que se repete em diversos territórios de expansão do agronegócio, tem sido debatida a criação de um marco regulatório internacional para combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos junto à Organização das Nações Unidas, processo esse que ainda pode demorar anos para sair do papel e necessita de engajamento direto de lideranças mundiais e enfrentamento ao poder econômico das grandes indústrias em defesa do uso de venenos.

 

Edição: Nathallia Fonseca