Nesta segunda-feira (26), a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) lançou um dossiê, que analisa a cadeia da monocultura da soja, assim como sua logística em diversas dimensões e um dos alertas do documento diz respeito ao risco de faltar arroz e feijão na mesa do brasileiro, já que a expansão acelerada da commodity compromete o abastecimento de alimentos básicos.
Diana Aguiar, pesquisadora de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) lembra que a soja é o carro-chefe do agronegócio no Brasil e representou junto com o milho mais de 90% de toda a safra de grãos colhidos no país em 2020.
::Gestão Bolsonaro agrava grilagem e estrangeirização de terras, dizem especialistas::
Para construção do documento, ela trabalha com a ideia de cadeia monocultural do grão, para se referir ao crescente domínio do agronegócio e da commodity soja, em particular, sobre as paisagens, mas também sobre as formas de pensar economia e o próprio país:
"A gente não pode esquecer que essa é uma produção essencialmente baseada na adoção de pacotes tecnológicos, que envolvem organismos geneticamente modificados, agrotóxicos, fertilizantes químicos e maquinário. Pacotes que são controlados por um número cada vez mais reduzido de corporações transnacionais, em razão das fusões e aquisições, por exemplo, da compra da Monsanto pela Bayer ou da Syngenta pela ChemChina e também a produção comercializada por um número reduzido de corporações as chamada tradings como a Cargill e a Bunge".
Apesar de ser cultivada no Brasil, a pesquisadora pontua que além de devastar as paisagens no país, causar conflitos no campo e de muitos dos produtores serem brasileiros, os lucros e os interesses são globalizados.
"A trajetória que nos trouxe até aqui não é de curto prazo, ela remonta – pelo menos o processo de modernização conservadora da agricultura durante a ditadura militar: a criação do Embrapa, os processos de desmatamento, grilagem e violência no campo, que estão associados à expansão da fronteira agrícola desde então e até os dias de hoje", explica.
:: Área devastada da Amazônia nunca será capaz de recuperar o seu bioma original ::
Segundo dados apresentados no documento, em 40 anos a produção brasileira de soja foi ampliada em 10x saltando de 12 milhões de toneladas, em 1977, para quase 125 milhões de toneladas em 2020:
"Esses ganhos espetaculares de produção tão celebrados se devem em grande medida ao aumentado a área plantada que foi de 5x. Só para ter como base de comparação, nas mesmas 4 décadas a produtividade média no país sequer dobrou, ou seja, essa tecnologia aplicada pelo agronegócio é celebrada com uma expressão da modernidade no campo e nem sequer pode reivindicar ser o principal motivo do aumento da produção da soja.
O fator determinante desse aumento foi a destinação de extensões cada vez maiores de terra ao cultivo da soja, em especial a fronteira agrícola da transição Cerrado- Amazônia e do chamado Matopiba (região entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), sobretudo, se valendo do ciclo do desmatamento e grilagem".
Modelo insustentável
O dossiê traz ainda as consequências econômicas desse modelo para a autonomia e diversidade produtiva do país, assim como para o incremento da concentração de renda e desigualdade, além das consequências ambientais como o desmatamento e contaminação por agrotóxicos, a exaustão hídrica, erosão da biodiversidade e consequências sociais como a concentração fundiária e a violência no campo associada a grilagem, que afeta populações locais de indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais.
Na avaliação da pesquisadora impressiona a resiliência e persistência acerca da ideia de que um modelo tão insustentável seja inevitável ou até desejável. Ela explica que, atualmente, o agronegócio irrigado – áreas com infraestrutura que permitem a aplicação de água nas culturas agrícolas em regiões de seca – tem concentrado uma parcela cada vez maior, inclusive, da produção de arroz e feijão.
Associado a isso está o contínuo desmantelamento de sistemas tradicionais e da comercialização de alimentos em circuitos curtos. "Todos esses processos provocam uma série de vulnerabilidades para o abastecimento alimentar", resume.
:: Agronegócio pagou apenas R$ 16,3 mil em imposto de exportação durante todo 2019 ::
Outro ponto são as políticas públicas, incluindo, a pesquisa pública que têm reforçado a padronização e concentração produtiva dos alimentos mais tradicionais.
"O resultado disso em geral, por exemplo, é a Embrapa se mobilizando para atender as demandas do agronegócio, no desenvolvimento de variedades específicas. Esse tipo de resposta da pesquisa oficial pode até contribuir em alguns casos para o aumento da produção em valores absolutos, mas isso vai acontecer em detrimento da produção da agricultura familiar e camponesa, desconsiderando totalmente a importância da produção baseada na agrobiodiversidade e no fortalecimento dos mercados locais".
Para ela, esse é, apenas, um dos muitos exemplos de como o Estado tem consistentemente apoiado e subsidiado o modelo de produção, comercialização e consumo associado ao agronegócio enquanto a agricultura familiar camponesa precisa, constantemente, lutar para conquistar políticas públicas que sejam adaptadas a sua realidade.
Além disso, fica cada vez mais difícil que a população tenha acesso a comida de verdade, saudável e variada. A pesquisadora conta que não é incomum regiões importantes para produção de commodities para exportação dependa da compra de alimentos de outras regiões para alimentar sua própria população:
"A crise de abastecimento no Mato Grosso, durante a greve dos caminhoneiros em 2018, é bastante sintomática desse fenômeno. As formas que podem ser tomadas para mudar isso envolve múltiplos caminhos, que vão desde a mais profunda necessidade de superação dessa cadeia monocultural da soja e de outras commodities em suas expressões tanto nos campos quanto nas mentes até a retomada de políticas públicas de apoio a agricultura familiar e camponesa sem esquecer da titulação de territórios indígenas e tradicionais e da sempre necessária e mais do que nunca necessária: reforma agrária".
Edição: Vinícius Segalla