Este texto traz breves comentários sobre a lei de proteção do Estado Democrático de Direito, que extingue a Lei de Segurança Nacional. O novo texto propõe uma alteração no Código Penal, incluindo um Título específico para tratar dos crimes contra o Estado Democrático de Direito tipificados em seis capítulos.
A alteração não é uma mera questão de técnica legislativa, mas expressa uma mensagem política do parlamento: extinguir o bem jurídico da segurança nacional que era protegido nas constituições brasileiras de 1934, 1937, 1946 e 1967; terminando o trabalho iniciado com a constituição de 1988. A atual Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983) foi adotada ainda na ditadura militar e reflete as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a 1985. A Constituição de 1988 inaugurou uma nova era na história brasileira, configurando a República Federativa do Brasil como Estado democrático de direito, fundado, entre outros princípios, na promoção dos direitos humanos. Em consonância com esse entendimento, a revogação da Lei de Segurança Nacional foi uma recomendação expressa do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
A nova lei, no entanto, não deixa de ser uma Lei de Segurança Nacional, centrada na figura de defesa do Estado. De fato, é necessário proteger o Estado, diante, por exemplo, da venda de informações secretas por funcionários públicos para outros Estados. Entretanto, cabem reflexões para não repetirmos equívocos e vícios anteriores. O PL se propõe a tratar dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Debates relevantes sobre segurança questionam a centralidade da figura do Estado, propondo a ideia de segurança humana. Em termos breves, trata-se de colocar a segurança da pessoa humana (acesso a escola, água, alimentação, informação) no centro das reflexões sobre a segurança internacional, ampliando a perspectiva mais tradicional (frequente durante a Guerra Fria) que é baseada na questão territorial e de disputa de poder. Sob a mesma lógica, o que é proteger o Estado Democrático de Direito? O artigo primeiro da Constituição de 88 tem uma visão ampla sobre o Estado democrático de direito, mais próxima da discussão sobre segurança humana, quais sejam, defesa da: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político.
Os comentários a seguir dizem respeito a aspectos de defesa e segurança, não se propondo exaustivos, mas sim reflexivos, e dedicando-se apenas aos tipos penais. Em comparação com o texto de 1983, há avanços, e tratar do tema é particularmente importante em um momento de ampliação do uso da lei existente para a criminalização da livre expressão, como ocorreu com o Felipe Neto, ou para a perseguição de adversários políticos, como no caso de Guilherme Boulos.
Seguimos, agora, para a análise do texto:
1. O texto emprega termos controversos na área de defesa e segurança, como o conceito de ameaças, por vezes o adjetivando com um “graves”. Não existem ameaças inequívocas e uníssonas. Ameaças são relacionais, ou em outros termos, algo que faz com que um indivíduo ou Estado se perceba ameaçado não necessariamente provocará o mesmo sentimento em outro. Considerando que as ameaças têm um sentido, ao menos parcialmente, subjetivo significa que o âmbito de aplicação pode se tornar amplo em demasia, podendo levar à criminalização de discursos, atos ou sinais que supostamente ameaçariam o Estado. Em suma, a classificação de algo como uma ameaça é eminentemente política. Assim, faz-se necessário confrontar essa discussão teórica sobre defesa e segurança internacional/doméstica com a definição de ameaças existente no código penal. No Código penal, não existe o crime de “grave ameaça”. O crime de ameaça trata de “ameaçar alguém por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. Por isso, é um tipo penal em que cabe larga margem para interpretação estando, portanto, muito exposto à conjuntura política do poder Judiciário, único não submetido à soberania popular.
2. Quanto à dimensão do vazamento de documentos de natureza secreta ou ultrasecreta, ou a construção de restrições ao uso de meios telemáticos e digitais, acreditamos ser necessário pensar sobre algo que não faz parte do PL, mas traz implicações a ele. Ataques vêm sendo desferidos contra a importante conquista cidadã que é a Lei de Acesso a Informação. Da mesma maneira, não terminou a tramitação da Lei Geral de Proteção de Dados, e hoje essa área é inteiramente controlada por militares. Um dos efeitos da militarização do governo é o crescimento da cultura do sigilo, do segredo, dentro da administração pública. É preciso que, assim como acontece no caso das atividades de inteligência, o Legislativo se debruce sobre a necessidade de construir um controle externo sobre o que pode ou não ser classificado como um segredo ultrassecreto de Estado.
3. O texto trata de maneira conjunta e comparável crimes cometidos por Estados estrangeiros e por grupos estrangeiros, duas entidades jurídicas e políticas absolutamente distintas, inclusive pelo regramento do direito internacional. Neste sentido, criminalizar articulações com “grupos estrangeiros” com a finalidade de provocar “atos de guerra”, principalmente se estes últimos não forem bem definidos, pode levar a um excessivo engrandecimento do poder punitivo do Estado. Basta pensar que propaganda ou uso manipulador de informação, em algumas perspectivas, pode ser entendido como ato de guerra. Portanto, não cabe um único peso para duas medidas. É preciso trata-los de forma distinta, dando ênfase aos crimes cometidos por Estados nacionais.
4. Confusões também estão presentes entre crimes passíveis de serem cometidos por indivíduos, organizações privadas ou servidores públicos, como nas passagens que tratam da espionagem e sobre o Golpe de Estado. No texto apresentado, há uma zona cinzenta quanto à penalização de atividades como espionagem, não sendo exagero afirmar que se sobrepõe, por vezes, o indivíduo ao Estado como equivalentes.
5. O texto emprega por várias vezes a expressão “poderes legitimamente constituídos”, tributário da Constituição de 1967, da ditadura militar, no lugar de defender a Constituição. Na história política nacional, há diferenças significativas entre um poder “legitimamente” constituídos e poderes Constitucionais. Logo, importa proteger os poderes Constitucionais, pois são estes os poderes legítimos no Estado Democrático de Direito.
6. No capítulo sobre a insurreição, muitos termos são vagos, como “dificultar o exercício do poder”, ou “produzir instabilidade”. Aqui, restam dúvidas quanto à qualificação destas atividades, abrindo espaço para interpretações muito amplas. A classificação será feita conforme ter ou não instrumentos de força, como é o caso de milícias ou clubes de tiro? Como será classificada a ação de grupos armados que pedem por intervenção militar?
7. O artigo sobre conspiração precisa ser integralmente retirado. Não é possível criminalizar uma intenção, não se pode prever comportamentos ou condenar ações antes de seu acontecimento. Em analogia, equivaleria a justificar as iniciativas unilaterais dos EUA propondo guerras preventivas. O mesmo ocorre com o artigo que trata da sabotagem, que enseja múltiplas portas de criminalização para ações reivindicatórias.
8. No artigo que trata do atentado às autoridades, é positiva a individualização do crime, que é cometido contra pessoas, e não contra Instituições. Por outro lado, atentar contra a vida ou contra a integridade física são expressões bem recortadas, mas o que significa atentar contra a liberdade? Caberiam ações desde o sequestro até críticas às autoridades feitas pela internet, alargando perigosamente seu espectro. Ainda, quanto a esse ponto, uma vez que foi incluído o Procurador Geral da República, não seria o caso de incluir as máximas autoridades das demais funções essenciais à justiça previstas na constituição – advocacia, advocacia pública e defensoria pública? Por que as excluiríamos?
9. No capítulo que trata das eleições, a intenção presente no artigo sobre violência política é relevante: proteger o direito de minorias políticas participarem das eleições, o que inclui o direito de votar, ser votado e até à mesmo organização de listas de candidatos e financiamento de campanha. Entretanto, o texto é superficial e pode ensejar múltiplas interpretações. A generalidade também se faz presente no artigo sobre a comunicação enganosa em massa, embora a intenção, da mesma maneira que a anterior, seja louvável. O que é uma informação inverídica? Quem determina? Há instâncias para recorrer da decisão? Se criminaliza a possibilidade de interferir no processo eleitoral? Como diferenciar a disseminação individual de mensagens falsas da produção e disseminação massiva patrocinada por empresas, inclusive estrangeiras? No texto, nenhuma dessas questões é esclarecida.
10. No capítulo que trata dos crimes contra autoridades estrangeiras ou internacionais, sugerimos a inclusão exata dos termos dispostos nas normativas internacionais, das quais o Brasil é signatário.
Extinguir a LSN é finalização tardia – mas melhor tarde do que mais tarde ainda, como diria o Barão de Itararé – da exclusão do bem jurídico da segurança nacional da ordem constitucional de 1988. É esse espírito que deve ser acolhido e preservado sobre o tema.
Edição: Rodrigo Durão Coelho