TRATAMENTO

Entraves burocráticos e prisão de cultivadores dificultam acesso à cannabis medicinal

Durante a pandemia, Anvisa atrasa liberação de medicamentos importados; valor chega a R$3 mil no mercado nacional

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A proibição do plantio em solo brasileiro faz os remédios à base da planta custarem entre R$ 2,5 mil e R$ 2,9 mil nas farmácias brasileiras - Robert Atanasovki/AFP

A burocracia para a importação de remédios à base de Canabidiol (CBD), princípio ativo da Cannabis, nome científico da maconha, tem deixado milhares de produtos barrados nas alfândegas. Somente em abril, mais de 600 famílias aguardam a liberação de seus medicamentos no Aeroporto de Campinas.

Uma dessas famílias é a do radialista Diegão Califa, de Florianópolis, pai do Jimi, um menino autista que se trata com CBD importado. "O moleque está surtando. Mas o problema do meu filho é comportamental, que já é um estresse gigante para ele. Mas e os pacientes que têm epilepsia? Que correm risco de morte, de parada cardíaca?", questiona o comunicador.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) justifica a demora da liberação dos medicamentos pela pandemia. “Devido ao cenário epidemiológico atual, a unidade da Agência que atua no Aeroporto de Campinas tem focado suas atividades na intensificação de medidas sanitárias de enfrentamento à Covid-19”, disse a autarquia em comunicado.

Brasil tem uso restritivo

A regulamentação para a produção e comercialização no Brasil de medicamentos à base de Cannabis foi aprovada pela Anvisa em dezembro de 2019.

O CBD e Tetrahidrocanabinol (THC) são os princípios ativos da maconha mais estudados e utilizados no tratamento de doenças. Atualmente, o Brasil autoriza apenas a fabricação e comercialização de produtos à base de CBD. O uso do substância para fins medicinais entrou em vigor no dia 10 de março de 2020. 

No entanto, a proibição ao plantio nacional, mantida pelos diretores da agência reguladora na decisão de dezembro de 2019, dá poder às indústrias e mantém pacientes e associações sem direitos, avaliaram defensores da causa e deputados ouvidos pelo Brasil de Fato à época.

Na América do Sul, apenas Brasil, Bolívia e Venezuela ainda não aprovaram nenhuma legislação para plantio de Cannabis.

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O Projeto de Lei (PL) 399/2015, em tramitação na Câmara dos Deputados, legaliza o cultivo para fins medicinais e industriais, embora vete o plantio individual.

No mercado nacional, medicamento chega a R$ 3 mil

A proibição do plantio em solo brasileiro faz os remédios à base da planta custarem entre R$ 2,5 mil e R$ 2,9 mil nas farmácias, e impede a criação de um mercado bilionário e com potencial de geração milhares de empregos.

Segundo estudo promovido pela empresa de dados do mercado de Cannabis New Frontier Data, a projeção mais otimista é que, em 36 meses após a legalização das vendas no país, o Brasil tenha 3,9 milhões de pacientes, o que representa um mercado de R$ 4,7 bilhões.


O radialista Diegão Califa, pai do Jimi, um menino autista que se trata com CBD importado / Reprodução/Instagram

O governo federal vem promovendo uma forte campanha contra o PL. Em setembro de 2020, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, chegou a enviar ao Congresso uma moção de repúdio à proposta.

Cultivadores são presos e pacientes ficam sem tratamento

Nesse contexto, pacientes e associações arriscam a liberdade plantando maconha e produzindo em casa os próprios remédios. Mais de 200 pacientes conseguiram habeas corpus na Justiça para cultivarem a planta. Só que muitos continuam sendo presos.

Em 5 de abril, a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul confirmou a prisão de dois homens em Ponta Porã que transportavam 4,5 litros de extrato de Cannabis utilizado na produção de óleos medicinais.

Um deles é o Paulo Henrique Coelho, que integra a Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama+Me). A apreensão do extrato deixou centenas de pacientes sem medicamentos. 

Outra prisão registrada foi a do terapeuta canábico Márcio Roberto Pereira, detido em 2018 em Xapuri (AC) com cerca de 1 kg de maconha na forma de flores e óleos. Márcio faz parte de outra associação de pacientes, a Maléli, de Marília (SP).

A erva seria usada no tratamento de um paciente que havia feito uma cirurgia de câncer de próstata. Ele foi condenado a 7 anos e segue em regime fechado.

Enquanto a guerra às drogas persegue pacientes de um lado, o governo se aproxima cada vez mais da farmacêutica paranaense Prati-Donaduzzi.

Ela é a única empresa a receber uma autorização sanitária da Anvisa para produzir derivados de Cannabis e vender em farmácias. O preço: R$ 2,5 mil cada frasco de 30 ml. O valor alto é justificado pela necessidade de importação dos insumos.

Pelo menos outras 10 empresas buscam a mesma autorização sanitária junto à Anvisa, o que poderia reduzir um pouco esse valor.

THC também é medicinal

Além do CBD da Prati-Donaduzzi, existe outro produto de cannabis nas farmácias: um spray de CBD e THC para controle de esclerose múltipla, o Mevatyl. Esse produto segue outra resolução, mas o preço é ainda maior: R$ 2,9 mil.

O THC é o princípio ativo mais recomendado no tratamento de certas doenças, como explica a médica pós-doutora em psiquiatra Ana Gabriela Hounie, especialista em doenças como TOC e síndrome de Tourette.

"No caso da síndrome de Tourette e em outros transtornos do movimento, o canabidiol isolado não funciona. Para essas e várias outras patologias, a presença do THC é fundamental. Muitos casos de epilepsia refratária que não respondem ao canabidiol respondem quando se dá um extrato rico nas formas ácidas", explica.

Esses outros canabinoides só estão presentes nos chamados óleos integrais (ou full spectrum), que são feitos a partir de toda a planta, e não de uma molécula isolada, como é o caso do CBD da Prati ou o Mevatyl.

“A maconha tem mais de 100 canabinóides diferentes. São muitas substâncias para que esse debate se reduza ao CBD e ao THC”, pontua o neurocientista Sidarta Ribeiro, mestre em biofísica, doutor em comportamento animal e pós-doutor em neurofisiologia.

“É por isso que precisamos praticar os estudos dos extratos amplos que oferecem propriedades terapêuticas distintas. São mais de 500 combinações diferentes”;

Diversas propriedades só são possíveis de serem extraídas de óleos importados ou os produzidos pelas associações de pacientes garantem.

CFM é contra

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não pensa o mesmo e reconhece apenas o CBD como terapêutico, e somente para tratar epilepsia refratária.

Em 2019, o CFM e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) emitiram uma nota com um pedido de revogação de uma consulta pública da Anvisa para a regulamentação do plantio da Cannabis no país, alertando sobre possíveis “riscos para a saúde pública”.

Dos 500 mil médicos registrados no país, pouco mais de 1,2 mil já prescreveram Cannabis. Na dificuldade do acesso, as associações de pacientes têm feito um papel social importante, encontrando médicos e garantindo produtos a preço justo.

Edição: Poliana Dallabrida