A política proibicionista de drogas no Brasil penaliza uma série de pessoas. De um lado, é da maconha que vem o principal remédio para o tratamento de pessoas epilépticas e dentro do espectro autista, mas o acesso à medicação é dificultada pela legislação.
De outro, muitos usuários sofrem pela falta de uma diferenciação de usuário e traficante na Lei 11.343/2006, principal motivo do encarceramento em massa da juventude pobre e negra.
Esses dois aspectos do impedimento do uso da maconha no país são abordados no documentário “Estado de Proibição”. O curta foi idealizado pelo Núcleo de Cannabis da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e traz depoimentos do impacto da política atual de drogas na vida das mães que precisam de tratamento para seus filhos, e das que tiveram seus filhos levados pela guerra às drogas.
Tratamento
Um dos depoimentos do filme é de Cidinha Carvalho, mãe de Clárian, de 16 anos, que sofre de síndrome de Dravet. A doença faz com que a criança tenha convulsões desde antes do primeiro ano de vida, o que pode causar problemas neurológicos.
No caso da jovem, os ataques epilépticos começaram aos 5 meses de idade e aconteciam muitas vezes ao dia, fazendo com que ela tivesse paradas respiratórias e uma cardiorrespiratória. Ela também sofreu de hipotonia, um enfraquecimento do tônus muscular: não conseguia correr, subir escadas ou andar mais de 100 metros.
Após muitas pesquisas na internet, Cidinha descobriu os benefícios da cannabis -- popularmente conhecida como maconha -- para o tratamento das doenças de sua filha, e cogitou até mesmo comprar através do tráfico.
“Pesquisando sobre THC (tetra-hidrocanabidiol) e CBD (canabidiol) [os dois componentes da planta], em 2013, falava-se que THC era uma substância do mal. Hoje sabemos que não é. Mas fiquei com medo de pegar uma rica em THC e de repente perder minha filha”, disse.
No início de 2014 ela conseguiu importar um óleo de canabidiol, que lhe custou US$ 500, dinheiro que não tinha condições de pagar todos os meses. Sua salvação foi conhecer a Rede Secreta -- grupo formado por cultivadores, médicos e advogados -- em um simpósio. Durante três anos, a Rede doou o óleo produzido por eles para Clárian, e as noites de cochilos segurando a mão da filha com medo das crises foram cessando.
As crises começaram a ser mais leves, conscientes. Depois de oito meses de tratamento, Clárian, que não permanecia em pé, para a surpresa da mãe, começou a pular em cama elástica durante uma festa de aniversário. “Foi impressionante. Era um tônus muscular que minha filha não tinha antes”. lembrou.
Se antes só falava frases incompletas, sem contexto, aos poucos, foi encaixando as palavras e hoje dialoga normalmente.
Desde o início, pensava em cultivar maconha caso a Clárian respondesse bem ao tratamento. Com a melhora impressionante da garota, Cidinha teve certeza que esse seria o caminho, já que o custo em importação é alto.
“O óleo industrializado geralmente tem o CBD isolado e já foi provado que, com a planta toda, o resultado terapêutico é mais eficaz”, acrescentou. Além disso, cultivando, é possível buscar as melhores tipos para o tratamento em específico.
A importação do CBD, geralmente extraído da maconha em forma de óleo, é autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2015. No entanto, o processo para a obtenção do remédio controlado não é simples. Após apresentar a receita e laudo médico, o paciente deve ser cadastrado na Anvisa. O pedido será analisado e, se autorizado, o indivíduo poderá importar o produto a base de canabidiol.
O cultivo é proibido por lei, mas algumas poucas pessoas estão autorizadas por meio de habeas corpus preventivo. Cidinha é uma delas. Após tentar pela Justiça Federal, teve seu pedido negado pela juíza, que se sensibilizou, mas voltou atrás. Foi quando entrou com pedido de habeas corpus, que, nas mãos de outra juíza, foi entendido que o cultivo era caracterizado como tráfico. Com um juiz criminal, a liberação foi finalmente concedida.
Punitivismo
Sem distinção de usuário e traficante na lei brasileira, a condenação é decidida pelo Ministério Público, polícia e magistrados com base em provas subjetivas, já que a posse de drogas não caracteriza a venda, necessariamente.
Segundo levantamento feito pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões em 2018, são aproximadamente 602 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, sendo que 25% estão presas por tráfico de drogas. Do total de presos, 73% são pretos ou pardos (Infopen, 2016).
“A descriminalização e a legalização para nós enquanto população negra é pelas nossas vidas. Vamos tentar de outra forma, porque o encarceramento e os assassinatos não estão resolvendo. Isso só está fazendo com que cada vez mais morram a população negra. Conforme matam um jovem, também matam sua família.”
A fala, que também aparece no documentário, é de Monica Cunha, coordenadora e fundadora do movimento Moleque -- constituído por mães e familiares de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e que discute os assassinatos de jovens negros no Rio de Janeiro. Ela também coordena a Comissão de Direitos Humanos da Alerj.
Monica teve seu filho, Rafael, assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em 2006. Ele entrou para o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) com 15 anos e foi morto aos 20.
“Não existem as medidas socioeducativas para adolescentes negros e favelados. Só as de punição. Para os adolescente branco, que também comete ato infracional, são apresentadas as medidas socioeducativas para que entendam o que cometeu, para não vir a cometer mais", protesta.
As medidas socioeducativas são medidas que deveriam ser aplicadas de maneira pedagógica a adolescentes que cometem atos infracionais, a fim de promover a reeducação do jovem. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as medidas podem acontecer em liberdade, meio aberto ou com privação de liberdade, sob internação.
Apesar de Rafael não ter se envolvido com tráfico de drogas, é a partir dele que Monica começa a se engajar e a perceber que grande parte dos adolescentes entram no sistema por tráfico.
“Não é uma guerra às drogas, e sim às pessoas. A quantidade [de droga] com a qual esses meninos são pegos é brincadeira para se configurar criminosamente e eles terem que cumprir medidas tão sérias que corrompem toda a sua vida”, afirma.
Liberação
O debate sobre descriminalização da maconha aguarda uma resolução definitiva que deveria acontecer no próximo dia 5, com o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, a pauta foi retirada pelo ministro Dias Toffoli após as mudanças recentes, resultado do projeto de lei número 37, proposto pelo atual ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB), que propõe penas mais duras e internação compulsória de usuários.
Cidinha é a favor da regulamentação geral da maconha, para que seja feita uma educação efetiva sobre os benefícios e malefícios da planta através da redução de danos.
“A proibição impacta à todos. Mesmo àquelas pessoas que acham que são isentas. Se eu soubesse desse efeito terapêutico da cannabis há 15 anos atrás, eu poderia ter livrado minha filha das sequelas que ela tem hoje. Esse é um dos efeitos da proibição”, lamenta.
Edição: Aline Carrijo