Em plena pandemia, em crise econômica e no transporte público, foram retomadas as obras do BRT mais caro do país, o de Salvador. Avaliadas em R$ 1 bilhão, as obras são alvos de denúncias e protestos que envolvem desde crimes ambientais, como a derrubada de centenas de árvores históricas e o tamponamento de rios, a crimes técnicos e fiscais.
Iniciadas em 2018 sob a gestão de ACM Neto, as obras foram retomadas em fevereiro de 2021 para a construção do Trecho 3, chamado de “Extensão”, apesar de ainda estarem sob fiscalização as obras do Trecho 1, que está em fase final e tamponou os rios Lucaia e Camarajipe sem autorização.
Além disso, irregularidades do Trecho 2 seguem sem explicações. Uma delas é a suspeita de superfaturamento de R$ 54 milhões no processo licitatório, ainda em curso durante apresentação do relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), feito entre 29 de agosto e 11 de outubro de 2019.
Análise de contas
Apesar dos indícios, o mesmo relatório informa que entre cinco consórcios concorrentes, o Consórcio Engetec/PCE ofereceu um desconto equivalente a mais de 1/3 do valor, referente a 34,64% do total.
O TCU considerou que o desconto mitiga a “irregularidade” e a investigação referente aos R$ 54 milhões foi encerrada.
O Consórcio Engetec/PCE venceu a licitação para as obras do Trecho 2 com uma diferença de valor superior a R$ 13 milhões em relação ao segundo melhor preço oferecido, pelo consórcio OAS/COESA/FUTURE/ATP/COHIDRO, que chegou a entrar com recurso.
Agora, no momento em que o prefeito de Salvador Bruno Reis (DEM) fala em colapso no transporte público, com pedido de ajuda federal, seguem a todo vapor as obras para o Trecho 3.
Desastre ambiental
Subaúmas, jaqueiras, coqueiros, gameleiras e acácias enchiam de verde o percurso que hoje é tomado por concreto. A derrubada de árvores históricas e tamponamento de rios estão entre as principais críticas de grupos ambientalistas contrários à construção do BRT em Salvador.
Calcula-se que no percurso de construção existiam 579 árvores e outros vegetais. A prefeitura alega que conseguiu reduzir o impacto do projeto com o corte de “apenas” 154, a retirada de nove que estariam mortas, o transplante de 169 para outros lugares e a preservação de 247 delas.
Na época, diversos grupos ambientalistas regionais, além de nacionais e internacionais como o Greenpeace e artistas como Tom Zé, Camila Pitanga e Caetano Veloso se posicionaram contra as obras.
Entre os movimentos que se posicionaram contra as obras está o Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá), que desde 2018 realiza uma série de protestos, como o abaixo assinado que coletou mais de 40 mil assinaturas.
Para o ambientalista e coordenador executivo do Gambá, Renato Cunha, as medidas propostas pela Prefeitura como o transplante de árvores e o projeto de compensação não resolvem o problema.
“Vai ser um impacto significativo em uma das avenidas mais bonitas de Salvador, com uma quantidade significativa de árvores, especialmente no trecho que vai do Parque da Cidade até o Rio Vermelho, inclusive árvores muito importantes, muito sagradas como a Sumaúma, que não devem ser suprimidas”.
Em um layout atrativo, a página da Prefeitura explica como se dá o processo de transplante de 169 árvores, ou seja, a retirada delas para outros lugares. Nesse espaço, explica que “para reparar ainda mais os possíveis danos causados ao meio ambiente, a prefeitura vai plantar 2 mil mudas de espécies nativas da Mata Atlântica”.
“A compensação que estão falando seria plantar árvores em outros lugares da cidade, que não vai compensar. Até essas árvores crescerem, em outros lugares, que é necessário também, não compensa a perda que vai ter naquele ambiente. Ali nada vai compensar, vai se transformar naquele ambiente cheio de concreto, com elevados e viaduto. Não tem compensação ambiental que possa reverter esse processo”.
Em artigo, o tamponamento do Rio Camarajipe é apontado como um dos fatores que provocaram aumento das enchentes que alagaram as Avenidas Antônio Carlos Magalhães e Lucaia, em abril de 2020.
Em 2019, o então prefeito de Salvador ACM Neto afirmou que, com as obras, a Avenida ACM não teria mais alagamentos em 2020.
O ambientalista Cunha lamenta a prática de tampar rios e impermeabilizar o solo, ao invés de torná-los cada vez mais acessíveis à população.
“A cidade está sendo objeto desse tipo de intervenção, a cidade cada vez mais perdendo os seus rios, ao invés de naturalizá-los de novo, manter eles a céu aberto, sem esgoto, com uma outra proposta de intervenção (...) daqui a dez anos ninguém lembra que ali tinha rio”.
A área já era alvo de alagamento nos anos anteriores e, em 2020, ainda estava em fase de obras, mas o arquiteto e urbanista Carl Von Hauenschild alerta para os impactos e a possibilidade de mais enchentes no próximos anos.
“Os rios, riachos e drenos naturais são transformados em subterrâneos, muitas vezes infradimencionados, por que não calcula e respeita os efeitos da crescente impermeabilização das cidades. Por que assim aumenta a velocidade e volume dos fluxos da jusante, que não cabem mais nos coletores confinados no caso de grandes chuvas e ainda dificulta a manutenção e limpeza dos drenos. Neste Trecho 2 este problema vais acentuar em muito”, alerta.
Ilegalidade
As obras realizadas a partir do Trecho 1 foram iniciadas de forma ilegal, uma vez que, além de outros ilícitos, não tinham autorização para o tamponamento do Rio Camarajipe, nem para a derrubada de árvores, o que resultou em protestos, denúncias e em duas ações civis públicas com pedido de suspensão das obras. Uma ação foi movida em conjunto pelo Ministério Público Federal e Estadual e outra pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-BA).
A ação civil pública movida pelo MPF-BA e MPE-BA elenca as seguintes irregularidades:
1. Ausência de Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV);
2. Ausência de Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA);
3. Ausência de projeto de mobilidade;
4. Ausência de significativa participação da população e das associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o pleno exercício da cidadania, como determina a gestão democrática estabelecida no Estatuto da Cidade;
5. Ausência de ampla publicidade de todo o procedimento licitatório, mediante veiculação no sítio eletrônico oficial;
6. Ausência de fundamentação para a adoção do Regime de Contratação Integrada;
7. Inexistência de Plano de Mobilidade, instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes, que deveria ser precedente ao empreendimento guerreado;
8. Inexistência das outorgas para uso do corpo hídrico, dentre outros ilícitos.
9. Não foram coletados dados claros acerca do problema a ser resolvido (índices de congestionamento, estatísticas de acidentes e de eventos de risco, etc);
10. Não foram apontadas fontes de custeio, previsão de custos ou documentos equivalentes a fim de determinar a viabilidade operacional, técnica, econômica, financeira e tarifária do empreendimento;
11. Não foram realizadas análises para determinar se as alternativas de custos e prazos condizem com as especificações.
Justiça e omissão
Apesar de todas as pontuações de irregularidades, em julho de 2018, os pedidos de liminares para a suspensão das obras do Trecho 1 foram indeferidos.
Recorreu-se da decisão e o pedido proposto pelo MPE e MPF foi novamente indeferido pela juíza Cynthia de Araújo Lima Lopes, juíza da 14ª Vara da Seção Judiciária da Bahia, alegando, dentre outros, que, à época, a obra não havia sido iniciada (sic), apesar dos tapumes e tratores no local e o arranquio de árvores já estarem em andamento.
Já o pedido de liminar para a paralisação proposta pelo IAB-BA, sequer chegou a ser avaliado. É o que explica a advogada Juliana Caires, que assina a Ação Civil Pública em nome do instituto.
"O recurso do Ministério Público foi indeferido, já o do Instituto nem foi apreciado. Ou seja, hoje temos o que se chama "perda de objeto", porque a obra... infelizmente já está concluído o Trecho 01. Não tem mais porque se julgar o recurso que a gente fez pedindo a suspensão da obra no período”.
Outro fato que chama atenção é sobre o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) ter sido obrigado judicialmente a conceder licença para o tamponamento de rios, mascarando assim mais um dos supostos crimes cometidos.
A medida foi feita com base uma liminar em mandado de segurança de dezembro de 2018, concedida pelo juiz Pedro Castro Godinho, da 8ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual.
Apesar de as obras já estarem em execução sem autorização, o mandado obriga o INEMA (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) a autorizar o Consórcio BRT para o manejo da fauna referente às obras, bem como obrigando-a a conceder a outorga para as intervenções no canal do Rio Camarajipe.
Apesar do pedido de liminar ter sido indeferido, ainda seguem em andamento as ações para apuração das irregularidades apontadas.
A advogada explica que a ação proposta pelo Instituto está na última fase que antecede a sentença, momento em que aguardam a nomeação de peritos por parte da juíza Cynthia de Araújo Lima Lopes.
Uma movimentação no processo de número 1005089-83.2018.4.01.3300 realizada na última segunda (30) indica que os documentos estão em posse da juíza, dessa maneira a nomeação pode acontecer a qualquer momento, mas sem prazo delimitado.
Para a nomeação dos peritos, o Instituto chegou a recomendar profissionais de três órgãos: Conselho Regional de Engenharia (CREA-BA), do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA) ou da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
"Agora está na fase do juízo nomear quem serão esses peritos, embora o Instituto tenha apresentado três instituições. O Instituto pediu que profissionais da UFBA fossem nomeados, até por uma questão de não ter custos para pagar (...) estamos esperando agora a resposta da juíza".
Desnecessário e ineficiente
Análises apontam que a estrutura do projeto, que conta com três viadutos e quatro elevados expandidos, priorizam o transporte veicular individual, em detrimento aos coletivos, o que já foge da justificativa de construção de um BRT. Além disso, em alguns trechos não existe demanda que justifique a opção pelo modal do tipo completo.
Estudo técnico da Prefeitura de Salvador disponibilizado em 2014 estabelecia, por exemplo, que no trecho entre o Dique do Tororó e a Estação da Lapa passam seis mil passageiros fora dos horários de pico, no entanto, para suprir a demanda do BRT são necessários, nesse período, no mínimo o dobro disso, que vai de 12 a 30 mil pessoas em circulação.
Dados disponibilizados pela Prefeitura de Salvador indicam que a demanda de passageiros por sentido em cada via era cerca de 14.256 em 2019, no horário de pico da manhã. No entanto, o Manual do BRT, editado pelo Ministério das Cidades (fl. 99) estabelece que a demanda para se justifique a adoção do modal, do tipo completo, deve ser de 45 mil pessoas.
A discrepância pode ter acontecido em razão da falta de estudos de viabilidade técnica, econômica e sustentável, que não foram apresentados até a abertura do Edital de Licitação - RDC nº 001/2017.
Alguns deles foram elaborados e apresentados somente depois, a exemplo do Plano de Mobilidade Urbana Sustentável de Salvador (PlanMob), aprovado em 05 de julho de 2018 e ainda em fase de regulamentação.
Em nota técnica elaborada pelo arquiteto e urbanista Carl, juntada à ACP do IAB-BA, também foi alertado que a quantidade de passageiros hora/pico não justificava uma obra dessa dimensão, e ainda, que a obra representa “um gasto desproporcional de recursos públicos se comparada a outras alternativas mais econômicas e eficientes”.
Ao Brasil de Fato, Carl levanta o questionamento de quem vai pagar os déficits impostos pela falta de demanda nos trechos, considerados desnecessários.
“Só os ônibus para o Trecho 3 para Itaigara/Pituba tem demanda de ônibus 170 lugares, mas não a curto prazo. Os do Trecho 2, do Parque da Cidade até a Estação da Lapa continuam em todo percurso sem demanda para ônibus de 170 lugares, nem no rush. Quem vai pagar o déficit desta parte? A concessionaria com certeza não, então quem vai pagar as contas será Prefeitura”.
Procurada, a Prefeitura Municipal de Salvador, por meio da Secretaria de Mobilidade (SEMOB) não se pronunciou até a publicação desta matéria, alegando inclusive falta de tempo em razão da crise no transporte público e do início da greve do setor rodoviário.
Edição: Rebeca Cavalcante