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Alguns ovos e a estranha sopa de tartaruga do século XIX

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O apetite voraz pela sopa de tartaruga fez com que, em cerca de um século, essas enormes criaturas marinhas começassem a escassear e a desaparecer dos mares - Unsplash
Que os ovos postos em Itanhaém choquem e, daqui a 50 anos, as tartarugas voltem para pôr filhotes

Nos últimos dias fevereiro, enquanto a pandemia recrudescia no país, uma tartaruga gigante nadou até a praia de Suarão, em Itanhaém, litoral sul de São Paulo, e depositou seus ovos.

Nunca antes um fenômeno como esse havia sido verificado nas praias da região e a tartaruga-de-couro também chamada de Dermochelys coriácea acabou ganhando um anel de identificação para ser acompanhada por biólogos marinhos, seu ninho ganhou proteção e telas, além de uma bióloga de plantão.

Duas semanas depois, a mesma tartaruga voltou a Itanhaém e desta vez depositou os ovos numa outra praia perto, chamada Satélite. O mesmo esquema de segurança, acrescido de repórteres de tevê em inúmeras matérias.

Tartarugas marinha gigantes foram muito comuns no litoral de diversos países do mundo até meados do século XX, quando começaram a ser alvo de intensa procura para alimentação. A poluição teve sua porção de culpa do desaparecimento das criaturas.

As tartarugas passaram a ser protegidas por no Brasil de maneira crescente a partir dos anos 1960 e, uma portaria do Ibama em dezembro de 1989, cristalizou a legislação. O projeto Tamar passou a proteger as tartarugas que vinham se reproduzir nas costas do país e hoje temos estações especiais, como museus, abertas para a visitação ao público na Bahia e em Santa Catarina.

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No século XIX, a sopa de tartarugas marinhas gigante era considerada uma iguaria. Servida em banquetes da realeza e em restaurantes refinados, a sopa era feita como um consomê, com a carne fervida com especiarias, legumes e vinho. A gordura, localizada entre o casco e as entranhas do bicho, era removida, cozida no próprio casco com especiarias e acrescida à sopa, dando um sabor especial. De cor verde, essa gordura era a razão da tartaruga, de casco amarronzado, ser chamada de “green turtle”, tartaruga verde, em inglês. A sopa era reverenciada por sua elegância cosmopolita, mas toda a tartaruga era servida em diferentes pratos, como filés ou cozidos.

O sucesso dessa iguaria era tamanho que os cozinheiros criaram uma “falsa sopa de tartaruga”, mais acessível para as donas de casa comuns, que se consistia em ferver a cabeça e os miúdos do boi com as mesmas especiarias e vinho que se usavam na sopa verdadeira. Diziam que o sabor era muito semelhante, sendo as duas consideradas revigorantes e deliciosas.

A falsa sopa de tartaruga ficou tão conhecida que se tornou um dos personagens do livro Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, romancista, poeta, fotógrafo e matemático. No livro, a personagem tinha cabeça e pés de vaca e corpo de tartaruga, com casca.

No Brasil, a sopa de tartaruga era uma iguaria comum entre os indígenas, que utilizavam as espécies de rios e lagoas. Viajantes também apreciavam o prato. Sua gordura é fonte preciosa de calorias.

A pipoca ancestral e a vida moderna

Mas o gosto pela a sopa de tartarugas marinhas também chegou por aqui, servida em diversos estabelecimentos na corte do Rio de Janeiro, sempre anunciada nos jornais da cidade. Em São Paulo, a partir da inauguração da ferrovia que ligava a cidade a Santos, em 1867, a sopa passou a ser mais comum, símbolo do cosmopolitismo crescente da pequena vila que se transformava rapidamente.

O apetite voraz pela sopa de tartaruga fez com que, em cerca de um século, essas enormes criaturas marinhas começassem a escassear e a desaparecer dos mares. No começo do século XX, já eram raras, quase em extinção. As primeiras leis de proteção da fauna foram feitas para proteger as tartarugas e pouco a pouco, com muito esforço, o consumo foi decaindo.

Hoje, é impensável comer uma sopa de tartaruga, e muito menos servi-la em restaurantes e afins. As receitas desapareceram dos cadernos e livros especializados. Criamos mecanismos de proteção e quando uma delas aporta em alguma praia, toda uma rede de cuidados é acionada. Que os ovos postos em Itanhaém choquem e que, daqui a 50 anos, as tartarugas voltem para pôr seus filhotes.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante