Mulheres em luta

Desempregadas, precarizadas e terceirizadas: a situação das mulheres na pandemia

Dados do IBGE mostram que a população feminina e negra é a mais atingida pela crise econômica

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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A taxa de desocupação entre mulheres já era maior do que a dos homens em 2019 - Divulgação - MMC

A pandemia de covid-19 atingiu em cheio a economia brasileira e, mais especificamente, a participação das mulheres no mercado de trabalho.

Mais da metade da população feminina com 14 anos ou mais ficou fora do mercado de trabalho no terceiro trimestre de 2020, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Isso significa que a taxa de participação das mulheres na força de trabalho do país, empregadas ou desempregadas em busca por emprego, ficou em apenas 45,8%, enquanto a dos homens ficou em 65,7%.

Já a taxa de desocupação, que representa o índice de desemprego, foi de 12,8% para os homens, 16,8% para as mulheres e 19,8% para as mulheres negras.

Pernambuco é um dos estados com maiores taxas de desocupação, 18,8% diante da média nacional (14,6%), estando atrás apenas de Bahia, Sergipe, Alagoas e Rio de Janeiro.

É de lá, em Caruaru, a 136 quilômetros de Recife, que Dukarmo Carvalho vive o que já considera um estado de vulnerabilidade social, em suas palavras. 

Até antes da pandemia, sua principal ocupação era recolher retalhos nas ruas da Feira da Sulanca, famosa feira de roupas do agreste pernambucano, para produzir panos de prato.

Nós mulheres temos que render o arroz, a carne, dividir o ovo para duas pessoas. A gente tem que fazer o arroz, escorrendo a água para botar em outra comida, para aproveitar a quentura.

(Dukarmo Carvalho)

Com a pandemia, muitas fábricas de roupas fecharam e a produção passou a se dar em cima de máscaras produzidas com TNT, sigla de "tecido não tecido", de baixa qualidade para essa finalidade.

"A gente não consegue utilizar esses materiais em pano de prato”, lamenta Carvalho que agora segue desempregada.

"Antigamente a gente escolhia no dia se comia de manhã, à tarde ou à noite”, afirma Carvalho. Hoje, “nossa vida é café da manhã e jantar. Só as crianças lancham e almoçam."

Mãe de sete filhos e avó de quatro netos, Carvalho vive em uma casa pequena com três famílias formadas por seus filhos, com a ajuda do Bolsa Família.

“Hoje a gente está vivendo abaixo da linha da pobreza, estamos caminhando para a miséria, para ter um país de muitos suicídios, de pessoas com transtornos mentais, porque você tem que estar forte para segurar uma família", desabafa.

Com o que tem à mão, as mulheres da família se dessobram para garantir a alimentação de todos.

“Nós mulheres temos que render o arroz, a carne, dividir o ovo para duas pessoas. A gente tem que fazer o arroz, escorrendo a água para botar em outra comida, para aproveitar a quentura", relata Carvalho.

Ela ressalta que a falta de recursos afeta também a higiene das mulheres na família.

"Estamos com dificuldade até de comprar nosso ‘módis’, porque cadê o dinheiro? Tem de comer. Isso vai prejudicando a questão da higiene, do shampoo, de algumas coisas que estão sumindo da cabeça das mulheres. Lavar um cabelo, usar um produto de higiene.”

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Em Caruaru, a economia gira em torno da Feira da Sulanca onde, mesmo antes da pandemia, os trabalhos já foram extremamente precarizados.

Carvalho conta que as mulheres “se submetem” a ganhar entre cinco e 10 centavos para tirar o “pelo” por peça de roupa, que são as linhas, para os donos poderem comercializá-las.

“Para alcançar uma meta de ganhar 100 reais na semana tem que trabalhar muito, que nem antigamente tinha que descascar muita macaxeira para poder ganhar dinheiro”, afirma a trabalhadora, que também faz parte do movimento por moradia da região. Hoje, sequer essa oportunidade existe.

Assim como acontece com Dukarmo Carvalho, entre as pessoas responsáveis pelo domicílio a taxa de desocupação já era maior entre as mulheres do que entre os homens, no terceiro trimestre de 2019: 10,7% diante de 5,7%, respectivamente.

Em 2020, no mesmo período, os índices foram de 14.4% para mulheres e 7.6% para homens, segundo o IBGE.

Diferença estrutural

Segundo Patrícia Pelatieri, coordenadora de pesquisas e tecnologia do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), há razões estruturais para esse cenário, para além da crise pandêmica e econômica conjunturais.

Em suas palavras, a estrutura de mercado brasileira é desigual quando se faz os recortes de cor e gênero. Há, estrutualmente, uma diferenciação salarial e de postos entre homens e mulheres, negros e negras e jovens.

O primeiro impacto foi entre trabalhadoras informais, sem carteira assinada, empregos domésticos, muito ocupados por mulheres.

(Patrícia Pelatieri)

Mesmo as mulheres com nível superior estão em postos de trabalho menos valorizados, geralmente nas profissões dos cuidados, como a saúde.

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“A gente já tem uma estrutura de mercado de trabalho desorganizada e desigual", aponta Pelatieri.

"Com a crise, essas populações mais vulneráveis foram muito mais afetadas. O primeiro impacto foi entre trabalhadoras informais, sem carteira assinada, empregos domésticos, muito ocupados por mulheres”.

Com base em dados do IBGE,  a pesquisadora aponta que esse setor sofreu uma queda de 400 mil postos com carteira assinada e 1,2 milhão de empregos sem registro.

No terceiro trimestre de 2019, foram 5,8 milhões de mulheres trabalhando em empregos domésticos e informais, no mesmo período de 2020, esse número caiu para 4,2 milhões.

Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), publicado em novembro de 2020, apontou para um dado de 76% mais mulheres do que homens fora do mercado de trabalho, no final do segundo trimestre de 2020: 321 milhões de mulheres desempregadas diante de 182 milhões de homens. A ONU se baseou nos dados de desemprego de 55 países de renda alta e média.

A gente está sem vaga em hospital, a pandemia está absurda e muita gente que quebrou há um ano, vai quebrar de novo.

(Elen Ramalho)

Sem perspectiva

Com o recrudescimento da pandemia, as perspectivas de conseguir um emprego diminuem para Elen Ramalho, de 35 anos e moradora da Cidade Tiradentes, um distrito da Zona Leste de São Paulo.

“Só sinto angústia, medo e insegurança, porque a gente consegue perceber que as coisas não vão melhorar, até porque não tem um planejamento para isso. Para melhorar o emprego, a saúde tem que estar controlada. Como a gente vai ter emprego?”, questiona Ramalho, que está desempregada há dois anos e vivendo informalmente.

A média móvel de mortes por covid-19 no Brasil chegou a 1.496 no domingo (7), a maior já registrada desde o início da pandemia, com pico de 1.910 mortos por covid-19 na quarta-feira (3), o número mais expressivo de óbitos oficialmente notificados desde o início da pandemia, em março de 2020, de acordo com o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass).

“A gente está sem vaga em hospital, a pandemia está absurda e muita gente que quebrou há um ano, vai quebrar de novo, ou seja, só prejudica”, afirma Ramalho. 

Hoje, Elen Ramalho mora com a mãe, o padrasto e dois filhos pequenos em uma obra inacabada do Programa Minha Casa Minha Vida.

É graças somente ao auxílio emergencial de R$ 600 e agora ao Bolsa Família, de R$ 220, junto com a ajuda financeira da mãe, que Ramalho consegue sustentar a si e seus filhos.

“Graças a Deus, se não a gente estava passando fome, mas estou vivendo no limite”, afirma.

Do outro lado de São Paulo, no extremo da zona sul, no Capão Redondo, Graciela da Silva, de 35 anos, também tem  dificuldade em vislumbrar uma melhora significativa desde que foi demitida, em maio de 2020, no início da pandemia.

Até então uma trabalhadora terceirizada, hoje Silva recorre ao mercado informal para garantir o mínimo para sobreviver, sem uma renda fixa. A situação a levou a trancar a faculdade, e não há perspectiva de volta. 

Para Silva, aquele que deveria mudar o rumo do recrudescimento da pandemia e da crise econômica, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), tem agido na contramão.

“Tem muita coisa que está deixando a desejar. Ele tinha que agir com humanidade, não é o que está acontecendo. Tem muitas coisas que poderiam ser evitadas, mas não são”, afirma Silva. 

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Reprodução da pobreza

O impacto da crise econômica que castiga mais as mulheres gera, além de uma baixa na qualificação do trabalho, uma perda da produtividade.

Trata-se de “um risco muito forte de aumento da pobreza, exclusão social, porque o desemprego de longa duração, o abandono da força de trabalho vai significar uma reprodução da pobreza”, afirma Patrícia Pelatieri, coordenadora do Dieese. 

“É como se estivéssemos dizendo, principalmente para a população pobre, que estudar não necessariamente irá trazer uma vida melhor do que a de seus pais e avós, que tiveram mobilidade social.”

O risco não é somente para vidas isoladas, em São Paulo e Pernambuco, mas para o futuro da população no geral, do país como um todo. "É muito triste olhar o mercado de trabalho e ver que nós estamos comprometendo o futuro", lamenta.

No entanto, a situação atual não é fruto somente da pandemia, mas de escolhas políticas e econômicas, como aponta Patrícia Pelatieri. A sensação é que “estamos fadados” a essa situação, mas isso não é verdadeiro.

“É consequência de escolhas políticas e econômicas. É possível e existam caminhos fora dessa lógica neoliberal que podem trazer o desenvolvimento econômico com igualdade social. É possível pensar um projeto de desenvolvimento para o pais que contemple a eliminação dessa desigualdade social, de gênero, raça, cor, geracional”, afirma Pelatieri.

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Enquanto isso, “o país que a gente vive hoje não permite mais nem escolher as nossas refeições, quanto mais ter sonho”, lamenta Dukarmo Carvalho, de Caruaru, no Pernambuco.

Edição: Leandro Melito