O Brasil se tornou, no último domingo (28), um dos 20 países a lançar um satélite totalmente projetado, integrado, testado e operado com tecnologia própria. Desenvolvido há 13 anos, o Amazônia 1 foi lançado com sucesso a partir do Centro de Lançamento Satish Dhawan Space Centre, no estado de Andhra Pradesh, na Índia.
O satélite ficará 752 km acima da superfície terrestre para monitorar desastres ambientais, reservatórios de água e regiões costeiras do Brasil, por exemplo.
O contrato para lançamento do Amazônia 1 na Índia foi assinado em 2018 pelo físico Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), exonerado por Jair Bolsonaro (sem partido) em agosto de 2019.
Eleito um dos 10 cientistas de 2019 pela revista britânica Nature, Galvão conversou com o Brasil de Fato sobre os antecedentes daquele processo. O ex-diretor do Inpe também criticou a diminuição dos recursos para pesquisa no país.
"O governo Bolsonaro cortou, na lei orçamentária anual para 2021, todos os recursos para desenvolvimento de satélites. Isso me preocupa muito, porque pode haver um esvaziamento da equipe de engenharia espacial do Inpe", lamenta.
Segundo o pesquisador, os cortes da atual gestão comprometem, por exemplo, o desenvolvimento de dois satélites que deveriam ser lançados em breve, como parte da mesma missão: Amazônia 1-B e Amazônia 2.
"Essa ameaça já está colocada, porque o desenvolvimento desses satélites não entrou no orçamento de 2021. Então, agora, já não tem recurso", ressaltou.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Qual a importância da Missão Amazônia e quais serão as contribuições do satélite Amazônia 1?
Ricardo Galvão: Há dois aspectos principais sobre a importância da Missão Amazônia. O primeiro foi que, a partir de 2001, o Inpe começou a desenvolver uma estratégia muito interessante, chamada Plataforma Multimissão (PMM), que serviria de módulo de serviço para vários satélites que seriam desenvolvidos mais tarde com até 650 kg, 700 kg, e com diferentes missões.
Porém, o desenvolvimento não foi tão rápido quanto o Inpe gostaria. Porque, ao mesmo tempo, o Inpe estava desenvolvendo satélites em colaboração com a China. Foi um projeto de muito sucesso, mas que não permitiu o domínio completo de toda a tecnologia para desenvolvimento de satélites.
Houve algumas indefinições, em parte pela diretoria do Inpe, em parte pela Agência Espacial Brasileira (AEB), em uma certa competição também com os militares, e nunca se havia dado foco nisso. Mas, a partir de 2008, a AEB, presidida pelo Marco Antonio Raupp, na gestão do presidente Lula [PT], começou a dar importância ao desenvolvimento dessa plataforma. No entanto, seria ruim desenvolver a plataforma sem ter uma missão.
Quando se desenvolve um satélite, é normal que se desenvolvam vários módulos extras. Porque, por exemplo, se uma câmera não funciona bem, não dá para esperar para desenvolver outra. Então, normalmente se desenvolvem várias câmeras.
Nesse processo, foi desenvolvida a câmera WFI, totalmente pela indústria nacional. Então, se tomou a decisão, entre 2008 e 2009, de desenvolver o satélite Amazônia 1, que permitiria colocar essa câmera para monitoramento de todo o território brasileiro, para dar alertas de desmatamento e degradação da terra, e ao mesmo tempo testar a Plataforma Multimissão em voo.
Porque não foi possível cumprir os prazos que o Inpe havia estipulado?
O desenvolvimento atrasou, principalmente, porque a partir de 2009 o quadro de pesquisadores do Inpe diminuiu muito. Houve um decréscimo de cerca de 1,5 mil servidores, em 2010, para pouco mais de 700, no ano passado.
Essa diminuição no quadro começou ainda no final do governo Lula, se acentuou bastante nos governos Dilma [PT] e Temer [MDB], e piorou no governo Bolsonaro.
Esse decréscimo foi um dos problemas. O outro foi na consultoria jurídica da União.
Uma coisa importante, que a sociedade não sabe, é que todo o sistema de desenvolvimento de satélites feito pelo Inpe incentiva o máximo possível a indústria nacional. Os contratos são feitos pelo Inpe com empresas particulares para desenvolver uma indústria aeroespacial consolidada. E a consultoria jurídica da União impedia que esses contratos fossem celebrados.
Em 2016, tivemos o que eu considero o grande feito do governo Dilma, que foi publicar a lei do marco legal da ciência e tecnologia, que facilita a assinatura dos contratos firmados entre empresas e instituições de pesquisa do governo federal. Porém, esse marco legal não está sendo bem aceito pelos órgãos de controle, que sempre colocam empecilhos.
Isso atrasou muito.
Essa dificuldade ocorreu também na assinatura do contrato para lançamento do Amazônia 1?
Sim. O satélite foi lançado pela Índia, e eu que assinei o contrato.
Para se ter uma ideia, esses contratos de lançamento têm que ser assinados dois anos e meio antes. Isso porque precisamos fazer uma concorrência internacional, saber qual o foguete que vai lançar o satélite, e aí testar o satélite de acordo com as vibrações desse foguete.
A consultoria da União não permitia que eu assinasse o contrato em 2018, porque o lançamento só seria realizado no plano quinquenal seguinte. Foi uma luta enorme para conseguir assiná-lo.
Então, tivemos vários empecilhos como esse, e a covid-19 também atrasou.
Quando entrou o governo Bolsonaro, todo mundo sabe, houve um decréscimo muito grande no apoio à pesquisa, e isso afetou fortemente o desenvolvimento dos satélites.
A maior parte dos engenheiros que trabalham nos satélites não são contratados do Inpe. São bolsistas do Cnpq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Eu só consegui isso por meio de uma colaboração muito boa com o presidente da AEB, que concedeu essas bolsas. Se não fosse isso, o satélite não teria sido lançado.
A atual gestão do Itamaraty fez uma publicação nas redes sociais reivindicando os méritos pela boa relação do governo brasileiro com a Índia, que teria permitido o lançamento do Amazônia 1 como parte de um Plano de Ação da Parceria Estratégica bilateral, concluído entre Bolsonaro e o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, em 2020. Você disse que a assinatura do contrato com a empresa indiana se deu em 2018, antes mesmo do início da gestão Bolsonaro. Então, o lançamento não tem nenhuma relação com o trabalho da atual gestão do Itamaraty?
Não tem relação nenhuma. De jeito nenhum. Pode ser que depois eles tenham debatido outras questões sobre o programa espacial, mas o contrato do Amazônia 1 foi assinado em 2018.
Tem uma história que eu gostaria de contar, que aconteceu na visita da comitiva de Bolsonaro a Washington, nos Estados Unidos, no começo do seu mandato. Eu ainda era diretor do Inpe e fui parte daquela comitiva, porque precisávamos assinar um contrato com a Nasa.
Antes de continuar, preciso lembrar que, quando nós fizemos a licitação para o lançamento do satélite, uma das empresas que se candidatou foi a SpaceX, daquele bilionário sul-africano nos Estados Unidos [Elon Musk]. Eles não foram classificados porque não forneceram a documentação correta para participar da licitação.
Em um domingo de manhã, durante a comitiva do governo Bolsonaro aos EUA, o ministro Marcos Pontes [Ciência e Tecnologia] me chamou, chamou também o presidente da AEB, e fomos à uma reunião com a representante da SpaceX, no hotel. O ministro queria saber se a SpaceX tinha interesse de participar da Base de Lançamento de Alcântara (MA), e eles disseram que não tinham.
Nessa reunião, a representante da SpaceX disse que queria fazer uma crítica ao Inpe, por ter sido desclassificada no processo de licitação, apesar de toda a sua experiência na área.
Então, o ministro [Marcos Pontes], em vez de passar imediatamente a palavra a mim, disse que lamentava ocorrido, que ele próprio já havia sido representante de empresas dos EUA no Brasil e sabia da dificuldade, e prometeu que com o presidente Bolsonaro os regramentos legais iam ser adaptados para facilitar a participação das empresas estrangeiras.
Depois que a representante da empresa agradeceu, eu pedi a palavra, como diretor do Inpe. Respondi a ela que a SpaceX foi desclassificada porque não apresentou a documentação exigida em uma licitação internacional, não apresentou os dados técnicos necessários. "Aqui também [nos EUA] vocês não poderiam participar de uma licitação sem fornecer a documentação exigida", eu disse a ela.
O ministro ficou ruborizado na mesma hora. Então, a representante da SpaceX disse que não forneceram os documentos porque sabiam que eles não eram necessários, na prática. Respondi que ela não tinha autoridade para dizer o que é necessário de acordo com a legislação brasileira.
Foi uma situação muito constrangedora. Mas, depois, foi até interessante que, na reunião da Câmara de Comércio dos EUA, ela me pediu desculpas.
Lembro que, no final da conversa, a representante da SpaceX chegou a dizer: "Eu lamento que vocês tenham contratado uma empresa da Índia que não tem condições de colocar o satélite no ar."
Mesmo ela dizendo isso, eu assinei o contrato. Então, você imagine, agora, a minha sensação ao ver o lançamento [do Amazônia 1], com o coração apertado. Fiquei muito aliviado.
Bolsonaro vem cometendo uma série de interferências na gestão do Inpe, além de reduzir o investimento em pesquisa. No entanto, não apenas o Itamaraty, mas vários integrantes do governo vêm tentando tirar proveito político do lançamento do Amazônia 1. Como você tem lidado com essa situação, no mínimo, curiosa?
Como já tenho uma certa idade, eu posso dizer que qualquer político, independentemente da ideologia, iria tentar tirar proveito disso. Qualquer governo faria isso.
Mas, é importante dizer: o desenvolvimento do satélite Amazônia 1 é um programa de Estado, que começou até antes do governo Lula. No governo Fernando Henrique [PSDB] foi criada a AEB e feito todo o programa espacial brasileiro. Depois, o governo Lula entrou, e não desconstruiu nada. Aliás, construiu mais na gestão dele, na percepção de que era um programa de Estado.
O governo Dilma também fez contribuições importantes à AEB, embora tenha infelizmente reduzido o orçamento para ciência e pesquisa no país.
Agora, no governo Bolsonaro, o corte foi bastante grande. Ele cortou as bolsas, e tiveram que demitir engenheiros que estavam trabalhando no satélite Amazônia 1.
Mas, é preciso dizer, o coronel Carlos Augusto Teixeira de [Moura], presidente da AEB, teve um papel muito importante ao reinstituir acordos e trazer as bolsas de volta para o Amazônia 1. Não foi mérito do presidente, claro, mas de alguém da gestão dele.
O Inpe, nesses anos todos, e desde o início da colaboração com a China, produziu vários satélites e envolveu uma equipe de engenharia espacial de altíssimo nível. Mas, para que esse conhecimento seja mantido, é necessário que o Inpe tenha, constantemente, projetos de desenvolvimento de satélites.
Nós esperávamos que isso continuaria nesse governo, com a renovação do acordo de colaboração com a China, e com o desenvolvimento do satélite Amazônia 1-B, mas isso não foi feito.
O governo Bolsonaro cortou, na lei orçamentária anual para 2021, todos os recursos para desenvolvimento de satélites. Isso me preocupa muito, porque pode haver um esvaziamento da equipe de engenharia espacial do Inpe.
Os satélites Amazônia 1-B e Amazônia 2 podem não ser lançados por falta de verba?
Essa ameaça já está colocada, porque o desenvolvimento desses satélites não entrou no orçamento de 2021. Então, agora, já não tem recurso.
Para finalizar, gostaria que você respondesse a uma pergunta que tem sido recorrente nos últimos dias. Por que o Amazônia 1 não foi lançado na Base de Alcântara?
Essa pergunta é muito relevante.
No final da década de 1970, quando começou a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), houve uma divisão de tarefas. O desenvolvimento de estratégias para aplicação da tecnologia espacial ficou a cargo do Inpe, e o desenvolvimento de lançadores ficou a cargo da Aeronáutica.
No começo, os militares seguiram uma estratégia errada. Eles estavam mais preocupados em desenvolver mísseis do que lançadores. E nisso eles tiveram muito êxito.
A Base de Lançamento de Alcântara nunca funcionou corretamente para lançamento de satélites. Houve uma tentativa, por meio da criação de uma multinacional entre Brasil e Ucrânia, de desenvolver o lançamento de foguetes para exploração da Base de Alcântara. Isso nunca foi executado corretamente. Essa empresa, inclusive, no governo Temer, começou a ser desmontada.
Toda essa iniciativa, de colaboração com a Ucrânia, atrasou muito o desenvolvimento da Base de Alcântara. E o satélite, que nós lançamos na Índia, não teria a mínima condição de ser lançado lá.
Precisamos lembrar que, em Alcântara, também há problemas legais que não foram solucionados – as populações quilombolas que vivem no entorno da base, por exemplo.
Além disso, não teríamos foguete para lançar o satélite na Base de Alcântara. O esforço para desenvolvimento de foguetes pelos militares no Brasil ainda não conseguiu colocar um satélite, por menor que seja, em órbita.
Edição: Poliana Dallabrida