ENTREVISTA

Israel executa “apartheid médico” ao impedir vacinação de palestinos, acusa político

Mustafa Barghouti, parlamentar palestino, critica postura de Israel em meio à pandemia: “Limpeza étnica”

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
País que mais imuniza no mundo, Israel disponibilizou apenas 2 mil vacinas para a Autoridade Nacional Palestina (ANP) - Foto: Jaafar Ashtiyeh/AFP

Israel tem sido elogiado internacionalmente pelo êxito na campanha de imunização contra a covid-19, sendo o país que, proporcionalmente, mais vacinou sua população até o momento. Mas, quando se trata dos palestinos, a política implementada pelo Estado israelense segue o sentido oposto. 

Enquanto 6,7 milhões de vacinas já foram administradas em Israel, conforme monitoramento do Our World Data, somente 2 mil doses do imunizante da Moderna foram fornecidas, no início de fevereiro, aos palestinos. Estas serão aplicadas em profissionais de saúde que atuam na Cisjordânia ocupada.

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Na última segunda-feira (15), a Autoridade Nacional Palestina (ANP) denunciou que o governo israelense bloqueou a entrada de uma remessa de 2 mil vacinas Sputnik V, de um total de 10 mil doses enviadas pela Rússia à Faixa de Gaza. 

Para Mustafa Barghouti, dirigente partidário da Iniciativa Nacional Palestina e membro do Conselho Legislativo, espécie de parlamento que reúne representantes dos territórios sob jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP), a postura de Israel em meio à pandemia dá continuidade a uma política de discriminação histórica.

“Começaram a imunizar qualquer um com um documento israelense, mas ignoraram os palestinos completamente. Temos milhões de pessoas vacinadas [em Israel] e 5,3 milhões de palestinos abandonados. Gradualmente, a doença vai se tornar muito mais proeminente nos territórios palestinos. É com isso e que estamos lidando e tentando convencer o mundo”, afirmou em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.

O parlamentar, que também é médico e membro do Comitê Nacional Palestino contra a Covid-19, explica que Israel controla 62% dos territórios palestinos e que, segundo o Artigo 56 da Quarta Convenção de Genebra, uma “potência ocupante deve, até o máximo de seus meios, manter os serviços de saúde nos territórios ocupados (o que inclui o enfrentamento a pandemias)".

Divergências

Segundo informações publicadas pela Agência Efe, deputados que integram o Comitê Parlamentar de Assuntos Exteriores e Defesa de Israel estão em desacordo sobre a liberação ou não das vacinas. 

Alguns deles estariam defendendo que o acesso aos imunizantes fosse condicionado à negociação do retorno de dois civis capturados pelo Hamas no enclave, como é conhecida a barreira militar israelense.

O governo de Israel, por sua vez, argumenta que os Acordos de Oslo, assinados por israelenses e palestinos em 1993, criaram a Autoridade Palestina e estabeleceram que o órgão assumiria a responsabilidade pelos cuidados de saúde de sua população.

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Contudo, Barghouti relembra que o autogoverno tem ingerência em apenas 38% dos territórios palestinos e mesmo quando alguma medida é tomada em relação aos cidadãos que vivem nas áreas ilegalmente ocupadas, a exemplo do envio das vacinas russas no início da semana, a ANP é impedida.

“Os políticos de Israel estão violando todos os padrões morais da prática médica. A Autoridade Nacional Palestina não pode trazer vacinas a não ser que seja autorizada. Estamos com uma grande campanha contra a política racista de Israel, cada vez mais conhecida como a política do apartheid médico", critica o político. 

O dever da potência ocupante, de fornecer as vacinas em conformidade com o direito humanitário internacional, é também previsto nos Regulamentos de Haia de 1907.

“Eles violaram a Convenção de Genebra e sua obrigação como potência ocupante. Estão vacinando centenas de milhares de colonos ilegais e negando a 3,1 milhões de palestinos, vivendo na mesma área [Cisjordânia], o direito à vacina. Em Gaza, temos 2,1 milhões de pessoas que não foram vacinadas até agora”, ressalta.


Arte: Fernando Bertolo/Brasil de Fato

Especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) também refutam o argumento israelense e endossam que a Convenção de Genebra se sobrepõe a acordos como o de Oslo.

Segundo Barghouti, as doses cedidas à Autoridade Nacional Palestina só foram disponibilizadas em resposta à repercussão internacional, a exemplo de pedidos da Organização Mundial da Saúde (OMS). 

“Sob pressão, deram apenas 2 mil vacinas enquanto tem 14 milhões de doses. A limpeza étnica é uma política oficial e uma prática comum de Israel. Eles estão tentando fazer essa limpeza na Cisjordânia para que possam anexá-la a Israel. Perdemos muitas pessoas que não deveríamos ter perdido”,  lamenta.

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Ele denuncia ainda que milhares de vacinas próximas ao vencimento estão sendo descartadas ao invés de serem entregues aos palestinos e que Israel se comporta como se estivesse acima da lei internacional.

“É uma política muito racista e totalmente inaceitável. Agora, a maioria dos israelenses estão vacinados e estamos vivendo na mesma área mas não temos imunização. Mesmo os 130 mil palestinos que trabalham nos assentamentos ilegais não têm sido vacinados”, diz o dirigente da Iniciativa Nacional Palestina.

Barghouti acrescenta que o fato de os palestinos serem obrigados a passar pelos chamados checkpoints, as barreiras militares israelenses, é algo que potencializa a transmissão do novo coronavírus.

Mesmo enquanto Israel estava em quarentena, o político relata que os palestinos continuaram a trabalhar normalmente para conseguir sobreviver.

Com uma situação econômica extremamente vulnerável em consequência da própria ocupação militar, agora aprofundada pela pandemia, Barghouti relata que a quarentena não pôde ser implementada.

Segundo ele, a política adotada em detrimento da saúde dos palestinos inviabiliza a contenção do vírus como um todo na região. 

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“Israel está cometendo um erro estúpido. O principal objetivo da vacinação é atingir a imunização coletiva. Eles não podem atingir essa meta se só vacinarem israelenses. A longo prazo a política israelense é prejudicial aos palestinos e a Israel”, afirma. “Não só a infecção continuará a se espalhar como continuaremos perdendo pessoas mais velhas e doentes crônicos. É realmente horrível. Os hospitais estão quase cheios, o sistema de saúde não pode tolerar esse número de pacientes em situação crítica”.

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De acordo com monitoramento da Universidade Johns Hopkins, 169.487 casos de infecção foram registrados na Cisjordância e em Gaza, sendo que 1.942 pessoas faleceram em decorrência da doença respiratória.

Além das negociações que devem ser feitas com a Rússia para a obtenção de mais doses da Sputinik V, a Autoridade Nacional Palestina aguarda o envio de 200 mil vacinas pea iniciativa Covax Facility, consórcio internacional da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o fornecimento de imunizantes contra a covid-19 para países pobres e em desenvolvimento.

O Brasil de Fato aguarda posicionamento do Ministério das Relações Exteriores de Israel sobre o assunto.

Edição: Rogério Jordão