Ao invés de considerar o carnaval como uma mera inversão do estabelecido, é preciso vê-lo como uma manifestação de toda uma estratégia diferente de produção de desejo que, transcendendo a fugacidade das serpentinas, escande e perturba constantemente o tecido social. (Néstor Perlongher, antropólogo, poeta e militante LGBT argentino)
Este ano tão atípico para os foliões também marca, na Argentina, os dez anos de restituição do feriado de segunda e terça-feira de Carnaval.
Esses dias, que seguem o fim de semana carnavalesco, constituem os chamados "quatro dias loucos" e foram retirados do calendário nacional durante a ditadura militar, em 1976 (a segunda ditadura vivida na Argentina). O feriado foi retomado apenas em 2011, por um decreto durante o governo da então presidenta, Cristina Fernández de Kirchner.
“São dias sagrados, reservados como algo sublime”, pontua o fundador do Centro Murga Via Libre Bahía Blanca, Guillermo Tellarini, durante um debate virtual em comemoração à data, promovido pelo Ministério da Cultura. “Foi sublime fazer o carnaval entre todas as murgas, com o governo, entrando em acordo com todos", relembra, mencionando a murga, uma das tradições carnavalescas argentinas.
Apesar de ter nascido em Buenos Aires, a murga toma as ruas de todas as cidades até o sul do país. Ela se caracteriza pelo ritmo, com predominância do bombo com prato, e pelo grupo que canta, dança e desfila, normalmente até um palco.
“É uma tradição longa, do início do século 20, mas é na década de 50 que toma uma identidade muito particular", conta Josefina Althabe, que faz e vive o carnaval portenho há 20 anos e, atualmente, é coordenadora da murga portenha Lxs Quitapenas. “O corpo de dança é preponderante, e há um grupo de palco e outro de percussão.”
Outra marca da murga são as letras críticas ao governo – algo que, ainda hoje, depois da ditadura, pode sofrer censura em alguns eventos.
Um carnaval diferente
O Carnaval del País, entidade responsável pela organização do carnaval de Gualeguaychú, na província de Entre Ríos, anunciou em janeiro o cancelamento do festejo, para a frustração dos foliões. É lá que acontece um dos carnavais mais conhecidos da Argentina, com desfiles, fantasias e performance, parecido com os desfiles das escolas de samba no Brasil.
Já as tradicionais agrupações de murga em Buenos Aires anunciaram apresentações virtuais, transmitidas do palco do Espaço Cultural Carlos Gardel, além de uma exposição itinerante em bairros. Elas também convocaram os vizinhos a enfeitar as casas, varandas, bicicletas e mochilas com quatro “banderines”, que representam os quatro dias loucos de carnaval.
“Desde abril do ano passado, sabíamos que o carnaval não seria como o conhecemos”, conta Althabe. “É estranho viver esse carnaval diferente. Por um lado gera tristeza e nostalgia, não poder encontrar com o público, os olhares, os sorrisos; mas por outro, tenho uma sensação de que o coletivo murguero está mais unido e trabalhando muito bem em conjunto.”
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O desenterro do diabo da alegria
Na região central e no norte da Argentina, o carnaval toma outra forma. Ali, são preservados rituais ancestrais dos povos originários andinos. Os foliões agradecem à colheita e fazem oferendas à Pachamama, a Mãe Terra, para que o próximo ano de cultivo também prospere.
Na região de Corrientes, esse ritual chama-se chaya, e apresenta algumas diferenças de acordo com a cidade ou a província onde é festejado.
Na região da Quebrada de Humahuaca, mais ao nordeste da Argentina, predominam as chamadas comparsas (similares aos blocos de carnaval no Brasil), em que os foliões se divertem jogando água, farinha, serpentinas, confetes e, às vezes, tinta – algo que os mais velhos dizem fugir da tradição.
A figura em comum nesses carnavais mais ao norte do país é o Pujllay, ou o diabo da alegria. O boneco do diablito é desenterrado na abertura do carnaval, em uma cerimônia que geralmente reúne multidões, e volta a ser enterrado ao final da semana de carnaval, com promessas para o próximo ano.
Ainda que com protocolos restritivos, na província de Jujuy, as comparsas reuniram centenas de pessoas. O protocolo limitava em até 20 integrantes por comparsa e um máximo de 100 foliões. A celebração deveria durar no máximo uma hora e meia e ser feita respeitando o distanciamento entre os participantes. No âmbito cultural, a reclamação foi pela descaracterização do ritual ancestral.
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Como pontua o gestor cultural Andres Pablo Cussi, a limitação de integrantes por comparsa desconsidera a tradição das fantasias: as comparsas são formadas por dezenas de pessoas fantasiadas de diablito, com as características roupas coloridas com chocalhos e espelhos e um rabo de tecido até três metros. No terceiro ano de uso, a fantasia é queimada.
“O protocolo não contempla as fantasias", pontua. “Nos fantasiamos por três anos, e no terceiro, a fantasia é queimada, no domingo de tentação. Fazemos os convites, porque o carnaval é muito popular, participativo, comunitário. O diabo sai às ruas muito cedo a recolher produtos nos armazéns, que serão oferendados à Pachamama para enterrar o carnaval.”
Ainda que vivido de outra maneira, o carnaval tomou sua forma e, como disse Josefina, as vozes não deixaram de ser ouvidas. “O carnaval representa a união do povo, o momento onde as pessoas que não costumam ter voz, passam a ter – e de um modo festivo", conclui, deixando escapar um sorriso no rosto.
Edição: Raquel Setz