Os movimentos de independência no Haiti começaram em 1790, combinados com insurreições de escravos e levantamentos de mulatos que faziam eco a Revolução Francesa, vitoriosa um ano antes na metrópole. O acosso das monarquias europeias à revolução triunfante em Paris foi replicado nas colônias, territórios desejados pelas casas reinantes do Velho Continente.
Os patriotas haitianos que lutavam contra o escravismo, a exclusão e pela independência fizeram uma aliança tática com a Espanha, para enfrentar todas as chagas que restringiram seu presente e seu futuro. Toussaint Louverture destacou-se como o principal líder, tornando-se o pai da independência haitiana. Como tenente-governador, quando a independência ainda não tinha sido alcançada e a Ilha se encontrava dividida em duas partes, desenvolveu um programa econômico gradual que foi resistido pelas classes altas da sociedade, próximas a França e também pelo povo que queria a separação definitiva da metrópole.
Internacionalmente, Louverture buscou apoio nos Estados Unidos, o que foi uma mostra de autonomia que Napoleão não podia aceitar, enviando em 1801, um exército com a missão de impor o controle sobre Haiti e criar um grande império francês na América que unisse a sua colônia no Caribe com a Louisiana que margeava o rio Mississippi na América do Norte.
Toussaint se viu obrigado a capitular diante do poderoso exército francês, mas o processo independentista e de liberação social haitiano não se deteve, a insurreição estourou com maior força sob o comando de um novo chefe, Jean Jacques Dessalines, quem desatou uma guerra mortal contra os brancos e os franceses até 1º de janeiro de 1804, quando se declarou a independência. França e todos os poderes coloniais nunca perdoaram Haiti e juraram fazer-lhe pagar caro sua ousadia... até hoje.
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Ainda que Dessalines tenha proclamado seu apoio a Francisco de Miranda e à luta independentista nas colônias do sul de América, seu desatino na gestão governamental e seu desenfreio diante o mel do poder o levaram à sua derrota e morte em 1806; o país, então, se dividiu.
No Sul, assumiu a condução Alexander Petión, que recebeu Simón Bolívar em 1816, dando-lhe ajuda material, financeira e moral, sem a qual teria sido impossível dar continuidade a luta emancipadora no continente com a rapidez que organizou o Libertador. Essa é outra razão dos poderes coloniais para condenar o Haiti de forma perpetua.
A chegada do século 20 trouxe a disparada dos Estados Unidos como poder imperial no mundo. Assim como a derrota do colonialismo espanhol resultou no controle neocolonial britânico, agora, este dava passagem aos Estados Unidos em sua fase de desenvolvimento imperialista. Assim, Washington assumiu a “responsabilidade” de fazer o Haiti pagar por sua decisão de ser livre e soberano um século antes. O país já era o mais pobre do hemisfério ocidental e assim continua sendo até hoje.
Em 1910, Estados Unidos deu início a uma série de intervenções de todo tipo no Haiti. Esse ano, utilizando como argumento o Corolário de Roosevelt da Doutrina Monroe, o governo do presidente republicando William H. Taft enviou unidades navais e um corpo da infantaria da marinha para dar “proteção” a um grupo de barqueiros que, sob coação, “comprou” o Banco Nacional de Haiti, passando a operá-lo como uma sucursal de Wall Street.
Anos mais tarde, em 1915, o presidente democrata Woodrow Wilson encarnou seu antecessor, ordenando a invasão do Haiti, colocando seu governo, exército, aduanas e finanças baixo administração de Washington, convertendo o país em um protetorado de fato ou, visto de outra forma, em uma colônia dos Estados Unidos, cujas forças armadas permaneceram no país por 18 anos, até 1933, tempo em que se impôs ao Haiti uma Constituição escrita nos Estados Unidos. As tropas de ocupação assassinaram a milhares de cidadãos durante os anos de controle da nação caribenha.
A instabilidade sob controle estadunidense se manteve por quase 25 anos até que em 1957, François Duvalier assumiu o poder, que governou como presidente vitalício, protagonizando brutais massacres, perseguições, detenções, desaparições e torturas contra dirigentes opositores e a população civil, tudo sob a tutela do governo dos Estados Unidos que sempre aprovou tais ações. Com a morte de Duvalier, o sucedeu seu filho, que deu continuidade as “políticas” de seu pai até que foi deposto em 1986.
Parecia que Haiti podia começar seu encontro com a democracia e com ela, o progresso e o desenvolvimento. Em junho de 1988, houve eleições, nas quais triunfou Leslie Manigat, que se constituiu no primeiro presidente eleito em mais de 30 anos. Mas, este foi prontamente deposto, inaugurando um período de governo militares curtos e instáveis.
Em 1991, foi eleito Jean Bertrand Aristide, que também foi deposto, mas reinstalado no poder, graças à pressão internacional. Em 2004, quando o pais comemorava o bicentenário de sua independência, os Estados Unidos organizaram um golpe de Estado para derrubar Aristide, mergulhando o Haiti em uma crise de proporções gigantescas.
Aristide foi sequestrado pelas forças armadas dos Estados Unidos e tirado do país com violência, da mesma forma que ocorreria com o presidente Manuel Zelaya, de Honduras, anos mais tarde. O fato produziu fortes incidentes que resultou em violência generalizada.
A África do Sul, destino final de Aristide, exigiu da ONU uma comissão para investigar sua derrubada, mas tal solicitação nunca foi escutada. Em troca, a ONU criou uma força militar de ocupação sob a duvidosa denominação de “Missão de Estabilização das Nações Unidas”. A mesma não foi capaz de cumprir a sua missão e nem foi capaz de estabilizar o país. Ao contrário, os Estados Unidos, que foram responsáveis pelo problema, dificilmente poderiam ser os promotores da solução, utilizando seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU para impedir qualquer decisão que apontasse a uma solução favorável para o Haiti.
O contingente da ONU transformou-se numa nova peste para o Haiti. Já em 2005 produziram um terrível massacre na cidade de Soleil, provocando dezenas de mortos incluindo mulheres e crianças. A isso, se somam as continuas violações de indefesas mulheres humildes da população e sua incapacidade para confrontar as calamidades de um país que devia estabilizar.
Esta força de ocupação que chegou a ter quase 11 mil membros – entre militares, policiais e funcionários e que esteve sob o comando das forças armadas de 20 países, entre eles, nove da América Latina – é uma vergonha para a ONU, convertendo-se em um novo flagelo que tem assolado o país.
Em janeiro de 2010, houve um enorme terremoto que devastou todo o país produzindo mais de 300 mil vítimas fatais, 350 mil feridos, 1 milhão e meio de pessoas sem casa e a destruição quase total da frágil infraestrutura do país
Embora tenha chegado ajuda internacional que permitiu aliviar em alguma medida a monumental crise humanitária gerada, ela foi insuficiente, ao servir somente como argumento para uma nova intervenção estadunidense com 20 mil fuzileiros navais, cuja mentalidade imperial não ajudou muito a extinguir a angustia de um povo indefeso.
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A crise foi utilizada por pessoas inescrupulosas para obter vantagens a partir do sofrimento do povo haitiano. O caso mais descarado e repulsivo é o do ex-presidente Bill Clinton, que utilizou sua fundação para desenvolver um plano de emergência e reconstrução que recebeu bilhões de dólares, desviando ilegalmente parte dessa ajuda, embolsando uma porcentagem.
Para o Haiti, a Fundação Clinton recebeu muito mais dinheiro do que enviou ao país como ajuda humanitária, como já havia feito em Moçambique, Papua-Nova Guiné, e com o furacão Katrina em Nova Orleans, roubando grandes quantidades de recursos, utilizando seus contatos em Washington para evitar ser auditado nem ser objeto de controle do uso da gigantesca ajuda recebida. Outra expressão da imunda moral imperial e do castigo ao que seguem submetendo o país caribenho.
Hoje, o povo haitiano novamente está lutando por seus direitos e contra a pretensão de um presidente fantoche, colocado pelos Estados Unidos, de prolongar ilegalmente o exercício do poder, sustentado pela força e pela a repressão que levam a cabo as organizações paramilitares criadas para reprimir a insurreição rebelde.
Para Venezuela, a solidariedade com Haiti é uma dívida eterna, não se sabe quanto tempo o exército republicano teria levado para alcançar a liberdade e quantas vidas mais teriam sido perdidas se Bolívar não tivesse recebido a solidariedade e a ajuda desinteressada do presidente Petión. Nossa independência e nossa emancipação – assim como a de outras cinco nações que Bolívar liberou – estão indissoluvelmente ligadas ao Haiti.
Haiti não precisa militares, necessita ajuda para o desenvolvimento e, na conjuntura de hoje, apoio moral e solidariedade para derrotar o tirano que governa sob os ditames de Washington.
*Artigo publicado originalmente no site Misión Verdad.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas