Estamos à beira da consolidação de um novo golpe de Estado na América Latina e no Caribe. Neste caso, estamos falando do Haiti, cujo governo dirigido pelo presidente Jovenel Moïse, vem levando uma longa deriva autoritária, na qual começou a minar as diferentes instituições da democracia do país.
Vale recordar que o Parlamento foi fechado em janeiro deste ano, que o presidente Moïse está governando por decreto, elaborando cerca de 50 decretos executivos nos últimos meses.
Tampouco o governo conta com um primeiro-ministro constitucionalmente eleito e diversas instituições, como diferentes órgãos judiciais, foram reduzidos por decreto à capacidade mínima.
É particularmente delicada a situação dos protestos e dos direitos humanos. Um relatório recente do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) indica que 133 pessoas foram assassinadas no marco dos protestos no Haiti entre 2018 e 2019, muitas delas assassinadas diretamente pelas forças repressivas do Estado e outras assassinadas por gangues aliadas ao governo.
O estudo indica ainda uma perseguição constante aos meios de comunicação da oposição e o assassinato de líderes políticos e sociais, como o caso do ex-presidente da Ordem de Advogados de Porto Príncipe, figura muito conhecida e respeitada no país, cuja morte teve grande repercussão.
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Também houve uma série de massacres, cometidos de forma sistemática em diferentes comunidades rurais organizadas e também em bairros populares da capital haitiana.
Um dos mais emblemáticos foi o massacre de La Saline [um bairro pobre haitiano], no qual 71 pessoas foram assassinadas. Sobre este massacre, no marco da Lei Magnitsky, os próprios Estados Unidos emitiram sanções contra dois funcionários do governo de Moïse e contra um miliciano identificado no massacre, com fortes vínculos com o governo nacional.
O mais curioso é que o reconhecimento e a crítica à situação dos direitos humanos pelos organismos estadunidenses ou pela própria ONU não parece ser vista como uma contradição, com o evidente apoio político que os EUA, a ONU e a OEA deram à continuidade do governo de Moïse.
Esses organismos internacionais, de alguma forma, seguiram respaldando a aspiração do presidente haitiano de se manter no governo até o próximo ano, bem como sua proposta de Reforma Constitucional.
Em relação a esta proposta de reforma, anunciada pelo governo, é importante destacar duas coisas. Em primeiro lugar, a Constituição vigente no Haiti, de 1987, é uma Constituição que expressa boa parte dos anseios democráticos do movimento social haitiano, que conseguiu pôr fim à longa ditadura de François e Jean Claude Duvalier.
Esta Constituição que, em certa medida, coloca uma série de obstáculos à eventual penetração de novos ditadores no país e que, obviamente, o atual governo tenta abolir para permitir o aprofundamento da concentração de todos os poderes do Estado e das forças militares na figura do Executivo.
Esta nova Constituição, segundo o governo, deveria ser revisada pela população e, posteriormente, aprovada em um referendo público realizado em abril.
No entanto, a elaboração dessa suposta e obscura Carta Magna está a cargo de figuras que não foram eleitas, mas por uma série de pessoas escolhidas diretamente pelo presidente.
Por isso, temos afirmado que esta nova Constituição tem um sentido de retrocesso e permitirá a consolidação da via autoritária em curso no país.
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O governo argumenta que só uma Reforma Constitucional poderá consertar a instabilidade social e política do Haiti. No entanto, oculta o fato de que essa instabilidade tem a ver com o acúmulo de 3 décadas de políticas neoliberais, o que levou o país a um patamar de desigualdade e pobreza sem precedentes.
Para oferecer alguns dados a respeito disso, a moeda nacional, o gourde, sofreu uma desvalorização de 147% na última década; também houve uma diminuição permanente dos salários e uma crescente inflação, que chegou a 25% no último ano, causando uma situação social polvorosa.
Deste modo, é difícil pensar que a instabilidade social pode ser corrigida apenas com uma reforma institucional.
Evidentemente, o que está acontecendo e o que acontecerá no futuro do Haiti tem a ver com a geopolítica caribenha.
O governo haitiano de PHTK recebeu um apoio explícito das últimas gestões dos EUA, de forma particular, desde que o governo de Moïse decidiu dar uma nova guinada à sua política exterior, sobretudo após começar a hostilizar a Venezuela, ao retirar-se da Petrocaribe, se tornando um país fundamental no lobby dos interesses estadunidenses em organismos inter-regionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Comunidade do Caribe.
O conjunto das forças mobilizadas no país, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais do campo e da cidade, convocaram uma greve geral para os próximos dias 06 e 07 de fevereiro, algo que será decisivo.
Além disso, diversos setores da chamada oposição política parlamentar e movimentos sociais elaboraram uma proposta de transição política para o país, composta por 37 pontos que apresentam uma série de reformas políticas e sociais urgentes e a construção de um governo de transição e coalizão nacional, por um período de pelo menos 2 anos, para levar adiante uma reforma política e eleitoral e convocar uma nova e transparente eleição para definir o futuro do país.
Edição: Leandro Melito