Coluna

Para cozinhar o lobo da fome

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Mary Francis Keneddy Fisher e seu gato em 1983 para a divulgação de seus livros pela Knopf Editora - Anne Leibovitz/Divulgação Knof
A contribuição de Mary Frances Fisher (1908-1992) para a gastronomia é imensa, publicando 27 livros

Mary Francis Kennedy nasceu no dia 3 de julho de 1908 em Albion, Michigan, Estados Unidos. Poucos anos depois, em 1912, mudou-se com a família e o pai jornalista para Whittier, para a Califórnia. Em pouco anos, aluna rebelde e leitora apaixonada que era, caiu de amores pela cozinha. Sua avó Holbrook era extremamente religiosa, seguindo uma dieta estrita, influenciada pelos escritos de John Harvey Kellog, com vegetais cozidos demais, carnes passadas e cerais sem graça. Sua vida foi uma busca por um novo tipo de cozinha, solar, com gosto, textura e condimentos, influenciada pelos muitos anos que passou na Europa com o marido Alfred Fisher.

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A contribuição de Mary para a gastronomia é imensa, tendo publicado em vida 27 livros, incluindo a tradução para o inglês da Fisiologia do gosto, de Brilliat Savarin. Eu gosto particularmente de um de seus livros, Como cozinhar um lobo, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 1998. E é dele que vou falar aqui.

Primeiro, é interessante pensar na forma como ela foi publicado. Na língua inglesa, muitas vezes o editor usava as iniciais das escritoras para esconder seu gênero, para dizer que aquele poderia ser um autor e não uma autora — até hoje isso é frequente, aconteceu com J.K. Rowling, por exemplo, autora da saga de Harry Potter. Foi o que aconteceu com ela, que teve todos seus livros assinados por M.F.K. Fisher. Esse disfarce da capa dura pouco. Quando você abre as primeiras páginas, rapidamente se depara com um texto leve, despretensioso, escrito por uma mulher em primeira pessoa.

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May em uma feita na França, quando morou lá com seu primeiro marido Alfred / Reprodução/Literary Hub

Durante sua vida, Mary viveu as duas guerras mundiais de maneira intensa. Neste volume, publicado em 1942, ela ensina as donas de casa americanas a lidarem com a escassez de alimentos durante a Segunda Guerra Mundial. O lobo, que é cozido no livro, é um sinônimo para a fome. Então, na verdade, esse é um livro de receitas de quem precisa enganar a fome, numa época de enorme falta de comida – um período de exceção.

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Pandemia: tempos de exceção

De certo modo, também vivemos tempos de exceção, nessa pandemia que parece não ter fim. E, numa dessas noites quentes de janeiro, peguei-me pensando no livro e em Mary. Aquele foi um de seus primeiros livros, premida pelos acontecimentos que vivia, lembrando da outra guerra que vivera, com a certeza de que esses tempos de exceção são correntes e voltam amiúde. Mary dá muitas receitas sensatas e fáceis de se fazer, escritas numa linguagem simples, e que poderiam ser reproduzidas facilmente – como ferver um ovo, como fazer uma sopa, como utilizar sobras de refeições em tortas ou afins, como improvisar sobremesas.

A cada receita comentada, ela se lembra de que eram tempos duros, era preciso fazer sacrifícios e que o lobo da fome aguardava à espreita. A cada refeição compartilhada em família, era preciso pensar na próxima, no próximo dia. Mary escrevia para as mulheres porque sabia que eram elas as responsáveis por colocar a comida na mesa pra espantar o lobo da fome.

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A fome, que volta a assolar o país nos dias de hoje, é de fato um lobo terrível e voraz. Come nossos estômagos, espeita pela janela, bate na porta nos momentos mais tensos. E ainda não estejamos vivendo tempos de racionamento de comida, certamente vivemos tempos de exceção, de destruição e morte. 

* Joana Monteleone é editora, historiadora e autora dos livros "Toda comida tem uma história" (Oficina Raquel, 2017) e "Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo" (Alameda Casa Editorial, 2015).

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Camila Maciel