EUA

Pequenos investidores se unem para subverter lógica de Wall Street e lucrar com isso

Parcela de investidores de varejo na bolsa dos EUA subiu de 10-15% para 40%, embalados por plataformas livres de taxas

Los Angeles, EUA |

Ouça o áudio:

Ação conjunta de investidores de varejo fez disparar o preço de ações de empresas em dificuldade financeira - Reprodução

Está aberta a temporada de caça ao lobo de Wall Street. Por meio de redes sociais e fóruns, como os do Reddit, diversos investidores de varejos, como são chamados os pequenos investidores que podem ou não ser amadores, se uniram para fazer frente a grandes fundos de investimento, utilizando as próprias regras do jogo.

A bolsa de valores americana admite uma prática conhecida como venda descoberta, que é uma estratégia de lucro rápido que aposta na negociação de uma ação que não se tem na carteira.

Trocando em miúdos: a venda descoberta (ou short selling, no termo em inglês) poderia ser descrita no bom português como uma tática que "faz cortesias com o chapéu alheio", porque se vende uma ação "alugada".

Leia também: Dolarização da economia impulsiona surgimento de aplicativos de entrega na Venezuela

Funciona assim: um fundo de investimento, munido de informações públicas e de análises próprias, acredita que as ações da empresa A, que hoje valem US$ 10, serão vendidas a US$ 7 em alguns dias, e ele quer lucrar com isso.

Então ele "aluga" os papéis no mercado e vende para os interessados pelo valor atual, de US$ 10. Caso a previsão se concretize, na hora de "devolver" o estoque de ações que ele pegou "emprestado", ele vai pagar sobre o valor corrigido, que é de US$ 7 – o que lhe daria um lucro de US$ 3 por ação. 

Se seu estudo for incorreto e as ações se valorizarem, então esse fundo passa a ter prejuízo. Como não há limites para o quanto uma ação pode subir, os riscos são grandes.

O problema é que os short-sellers, como são chamados aqueles que praticam a venda descoberta, têm má fama no mercado, porque eles apostam na queda do valor de uma companhia. 

"Muita gente fala que é uma atitude pouco patriota, porque se está dizendo que as ações de uma companhia pública vão desvalorizar, mas é importante entender que são esses movimentos que equilibram a bolsa toda", explica ao Brasil de Fato o chefe do departamento de finanças da USC, Larry Harris.

"Os short-sellers trazem o preço à realidade e é injusto taxá-los como vilões quando eles são, na verdade, apenas os mensageiros de notícias ruins", completa. 

Na semana passada, porém, os vendedores descobertos ganharam as notícias por terem perdido em seu próprio jogo. Muitos fundos de investimento praticaram a venda descoberta de ações de empresas como a GameStop e a rede de salas de cinema AMC.

Leia também: Relatora da ONU visita Venezuela para verificar impactos do bloqueio feito pelos EUA

Ambas estão passando por sérias dificuldades financeiras: a primeira, que insiste no obsoleto modelo de negócio de venda de cartuchos e acessórios de videogames em lojas físicas; e a outra, que está basicamente paralisada por conta da pandemia

Seria natural pensar que as ações dessas duas companhias tendem a cair, uma vez que não há previsão de mudanças nos mercados onde atuam. Assim, fundos de investimento se apressaram a "alugar" suas ações e a vender pelo preço da época, apostando, portanto, que lucrariam com a má performance das marcas. 

Acontece que investidores de varejo, organizados nas mídias sociais, resolveram subverter essa lógica. Milhares deles resolveram comprar os papéis e o volume da demanda, claro, fez o preço da oferta subir. E eles continuaram comprando.

Leia também: Fascismo dá as caras, direita se reconfigura: a conjuntura pós-eleição em Portugal

Para dimensionar o impacto dessa jogada, o papel da GameStop, que era vendido a US$ 17,50 no dia 4 de janeiro, passou a ser vendido a US$ 396,50 em 28 de janeiro. Isso significa que em pouco mais de 20 dias as ações da "moribunda" GameStop dispararam 2.165%. 

No dia seguinte dessa alta "inexplicável" de empresas à beira da falência, plataformas de investimento como o aplicativo Robinhood, que não cobram comissão e abarcam uma grande base de usuários de investimentos de varejo, suspenderam a compra de novas ações dessas companhias.

A medida gerou diversas críticas e conseguiu, acredite, unir republicanos e democratas. A deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez chegou a postar em seu Twitter uma mensagem pedindo a investigação do Robinhood e de plataformas semelhantes, dizendo ser muito suspeito que grandes fundos de investimento tenham a liberdade de comprar e vender os papéis que bem entenderem, enquanto os pequenos investidores sofrem limitações. 

A postagem foi compartilhada pelo senador republicano Ted Cruz, um conhecido rival de Ocasio-Cortez. 


Valor de ações da rede de lojas de videogame GameStop disparou 2.165% em 20 dias / AFP

Não é o que parece

Para se defender, as plataformas de investimento correram à imprensa para explicar que a medida extrema era necessária por questões de segurança, uma vez que as agências reguladoras pedem que as corretoras tenham garantias financeiras para honrar suas transações.

Quando as negociações são atípicas, é comum que os "xerifes do mercado" peçam mais garantias. No caso do Robinhood, a exigência foi de US$ 3 bilhões – mais do que a empresa recebeu em toda a sua trajetória.

Para muita gente, a explicação soou como uma desculpa, mas economistas corroboram a versão das plataformas de investimento. "Nos Estados Unidos, as ações são honradas dois dias úteis após a negociação", diz ao Brasil de Fato o professor de economia da Georgetown University, Jim Angel.

"Acontece assim: no dia da negociação, um valor é acordado. No dia seguinte, os reguladores estipulam quem deve o quê para quem, e as corretoras precisam dar garantias monetárias para zelar pela integridade do sistema, até que todas as partes paguem e recebam o que lhes cabe". 

Leia mais: A casa de papel desta vez é digital

Para Allen Tran, usuário ativo do app de investimento Robinhood e dono de uma comunidade dedicada ao tema no Facebook, essa parte regulatória faz sentido, mas ele não concorda com o discurso de que as plataformas tenham paralisado parte das atividades para proteger seus usuários.

"De um ponto de vista pessoal, eu acho que qualquer um deve ter a liberdade para vender e comprar o que quiser, na hora que quiser", disse à reportagem.

Embora não tenha participado da "revolta das sardinhas", como ficou conhecido esse caso, Tran sofre as suas consequências. "Eu não comprei ações da GameStop, AMC e outras porque queria ficar longe dessa confusão, sabia que não era um bom investimento, mas agora vejo regulamentações no futuro.

Quando são brancos ricos usando as regras do jogo para lucrar, então tudo é permitido, mas quando os pequenos querem usar as mesmas estratégias para virar o placar, aí não pode. Esses grandes fundos precisam aceitar que não estão mais sozinhos".

Segundo Tran, a parcela de investidores de varejo na bolsa de valores subiu de 10-15% para 40%, embalados pela onda de plataformas livres de taxa de corretagem.

Até o ano passado, o aplicativo Robinhood, que começou essa tendência de "taxa zero", contava, sozinho, com 13 milhões de usuários, mas ficou no topo das lista dos apps mais vendidos ao longo dos últimos dias, surfando na onda dessas polêmicas – e críticas. 

Uma reportagem do Wall Street Journal indicou que, nesse período, um milhão de novos usuários se cadastraram na plataforma.


Por não cobrarem taxa de corretagem, aplicativos como o Robinhood fazem sucesso entre os investidores de varejo / AFP

É preciso estar atento e forte

Embora celebrem a chegada de novos investidores às bolsas, os especialistas pedem cautela, lembrando de que se trata de um risco. "Não é inteligente jogar um jogo que não se sabe as regras ou que não se é talentoso para jogar. É por isso que existem fundos de investimento e agências especializadas, para ajudar aqueles que não têm 'talento' para a coisa", explica Larry Harris. 

No caso da GameStop, AMC e outras empresas envolvidas nas polêmicas dos últimos dias, grandes fundos de investimento perderam, mas pequenos investidores, que queriam se aproveitar da situação, também acabaram prejudicados.

"Aqueles que chegaram tarde e pagaram caro pelas ações, impulsionados pelo frenesi, se deram mal; perderam muito dinheiro mesmo", diz o chefe de finanças da USC, que insiste que o evento foi fruto de especulação.

Leia também: Qual o papel do fundamentalismo religioso na oposição a Joe Biden nos EUA?

"Os grandes agentes que praticam vendas descobertas estão atuando de acordo com as regras, usando de informações públicas para preverem o movimento da bolsa. Essa ação conjunta manipulou o preço sem explicação. Eles compraram ações não porque acreditam no desempenho das companhias, mas para lucrar com uma tática que só beneficia quem chega primeiro", defende.

De fato, as ações da GameStop já despencaram mais de 65% desde o ápice das notícias, fazendo com que os usuários que apostaram na empresa dias atrás, quando as ações passavam dos US$ 300, ficassem com prejuízo.

Enquanto as autoridades investigam todas as movimentações para averiguar se o caso pode ser configurado como manipulação de preço e, a partir daí, tomar as devidas providências, professores de economia explicam que os fundos de investimento não são os vilões da história. 

"As pessoas pensam que fundos de investimentos só acomodam bilionários, mas a verdade é que fundos de pensões, as aposentadorias de policiais, bombeiros, encanadores, de pessoas como eu e você, estão ali também", explica Harris. "Quando eles perdem, perdemos todos um pouco. Só Wall Street que não perde nunca". 

Edição: Leandro Melito e Raquel Setz