Grupos com baixo potencial de desenvolverem casos graves de covid-19, crianças e gestantes não foram testadas durante os estudos de desenvolvimento das vacinas contra a doença, que priorizaram voluntários com idade entre 18 e 59 anos. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os testes da CoronaVac no Brasil. Agora, o Instituto Butantan, que produz o imunizante em parceria com o laboratório chinês Sinovac, anunciou que irá estudar em laboratório a vacinação nesses segmentos.
Os testes ainda não têm previsão de data para começar, mas já geram expectativas e dúvidas na população. Uma delas é, por exemplo, como se dá esse tipo de pesquisa. O biofísico Rômulo Neris, integrante da Equipe Halo, que acompanha os esforços conjuntos dos cientistas na produção de vacinas contra a covid-19, esclarece que o processo inclui as mesmas etapas dos estudos em adultos, mas exige também procedimentos adicionais, principalmente nas mulheres grávidas.
“Precisa monitorar a gestação, a saúde do feto, o pós-parto, caso ele aconteça durante a condução do estudo. Isso é feito pra garantir que não haja nenhuma possibilidade que não tenha sido incluída anteriormente no estudo. Da mesma forma [ocorre com] crianças”, explicou, durante entrevista ao programa Bem Viver, da rádio Brasil de Fato.
Não é uma discussão [no sentido] de ser potencialmente letal ou abortiva, até porque vacinas não fazem isso. Mas é mais uma questão de a gente seguir de acordo com as orientações das nossas agências de saúde
Durante a conversa, ele esclareceu ainda outras questões relacionadas ao assunto, como a segurança e eficácia da CoronaVac — já atestadas anteriormente — e a falta de indícios científicos que demonstrem riscos graves para gestantes em vacinações em geral.
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O roteiro da conversa contou ainda com um reforço no alerta: é preciso manter os cuidados de prevenção sanitária para barrar o novo coronavírus, mesmo com a vacinação em andamento no país. “Todas as medidas são fundamentais e, provavelmente, terão que ser adotadas até que a gente tenha imunizado uma quantidade suficiente de pessoas”, realça Neris.
Confira a seguir a entrevista na íntegra.
BdF - O Butantan disse que iria incluir crianças e cerca de 500 mulheres grávidas nos estudos sobre a vacina. Até então vinham sendo testados apenas voluntários com idade entre 18 e 59 anos. Por que crianças e gestantes não entraram antes nos testes?
Rômulo Neris - Muita gente tem se feito essa pergunta e tem usado até a ausência de grávidas pra discutir potencial de riscos da imunização, o que não é verdade. Quando a gente faz um estudo sobre um novo tratamento, uma droga, uma vacina, a gente precisa ter um grupo de estudo muito bem delimitado, muito bem definido e a gente não costuma testar crianças e grávidas; primeiro porque, pra se testar gestantes em ensaios biológicos dessa natureza, é preciso uma série de cuidados e parâmetros adicionais que tem que avaliar.
Precisa monitorar a gestação, a saúde do feto, o pós-parto, caso ele aconteça durante a condução do estudo. Isso é feito pra garantir que não haja nenhuma possibilidade, nenhuma variável que não tenha sido incluída anteriormente no estudo. Da mesma forma [ocorre com] crianças. Crianças em estudo também podem ser acompanhadas, mas a gente também precisa de um acompanhamento especial.
A diferença, quando a gente está tratando dos esforços contra a covid, o que talvez vá tornar essa questão mais tranquila, é que a gente está falando de vacina, e vacinas, em geral, não têm nenhum tipo de consequência associado à idade ou a quadro gestacional que a gente conheça. As vacinas são seguras, e isso acaba nos levando a um cenário em que a gente pode favorecer, pode testar primeiro indivíduos que estão mais expostos ao vírus ou que têm maior risco de desenvolver uma complicação.
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Ainda não foi revelado quando esses estudos devem começar, mas quais devem ser as etapas de testes necessárias para que lá na frente esses grupos sejam incluídos na vacinação?
É muito parecido com o estudo feito em adultos. Basicamente, o que precisa fazer são três coisas. Primeiro, a gente já confirmou os dados de segurança da vacina. A gente sabe que ela não é capaz de induzir nenhum tipo de reação adversa que não seja dor local, febre leve e, em alguns casos, dor de cabeça, mas nada de muito crítico.
A gente também precisa fazer esses estudos de segurança em grávidas e crianças. Isso é simples porque as vacinas, em geral, são desenhadas dessa maneira. As piores consequências que a gente pode ter são reações alérgicas, que são casos extremamente raros e não letais. Então, é mais uma etapa adicional, e depois disso a gente começa a caracterizar como é e se a vacina protege o indivíduo.
Então, os próximos passos são mostrar que as grávidas e crianças também produzem anticorpos numa quantidade considerável, comparado ao que a gente já viu em indivíduos que foram imunizados de outros grupos, e, em seguida, ver qual é a frequência de covid nos grupos que foram imunizados em comparação com os que não receberam [imunizante], que são aqueles que recebem o chamado “placebo”.
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Então, são as mesmas etapas de testagem de vacina, mas, como falei, a gente precisa ter alguns parâmetros adicionais de testagem pra garantir que a gente está considerando todo o processo gestacional. Precisa garantir a saúde do bebê, acompanhar o período da gestação, a qualidade da gravidez, e tudo isso acaba demandando um desenho experimental maior, um arcabouço maior, por isso acaba sendo mais delicado pra ser feito posteriormente.
Esse público só pode ser imunizado depois que ficar comprovado que os testes são seguros nesses segmentos, é isso?
Isso. Em geral, o que a gente faz é isso. A gente só recomenda algum tipo de tratamento, de intervenção quando tem os testes [mostrando] que naquele grupo esse tratamento é seguro e eficaz. Em alguns casos, alguns países estão adotando uma postura parecida, mas não tão restritiva.
Por exemplo, nos Estados Unidos, que está imunizando preferencialmente com a vacina da Pfizer, que também não foi testada em gestantes ainda, recomenda-se que, se a mulher grávida decidir ser imunizada e tiver essa opção, se for a vez dela na fila, ela pode, sim, ser imunizada porque, apesar de não haver os testes, também não há nenhum indício de que vacinas possam ser de alguma maneira graves pra gestantes.
Deve ser o mesmo caso pras outras vacinas que a gente está discutindo. Não é uma discussão [no sentido] de ser potencialmente letal ou abortiva, até porque vacinas não fazem isso. Mas é mais uma questão de a gente seguir de acordo com as orientações das nossas agências de saúde, que requerem que os grupos que vão ser alvo do tratamento tenham sido testados previamente pra comprovação da eficácia.
Qual a incidência da covid nesses grupos em particular? Tem algo que chama a atenção entre crianças e grávidas quando se olha para o cenário da pandemia?
Em termos de manifestação da doença, a frequência em ambos os grupos é extremamente baixa. Em termos de faixa etária, crianças – principalmente até os 4, 5 anos de idade – são a faixa menos afetada pela doença como também no numero de infecções confirmadas.
Então, crianças não parecem ser necessariamente um grupo de risco, o que dá um suporte adicional pra que a gente priorize a vacinação em adultos e idosos. Em grávidas, a doença também não parece ser nenhum tipo de fator de risco. A gente tem dados já que descrevem que covid-19 não aumenta o potencial de aborto espontâneo ou de complicações na gravidez [ocorridas] até então.
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Basicamente, como esses grupos são menos afetados pela covid-19, a gente acaba priorizando, de fato, os grupos de adultos saudáveis, principalmente profissionais de saúde, que estão mais expostos, e idosos, que são o grupo que, de longe, tem o maior risco de desenvolver complicações.
Uma dúvida que nunca é demais colocar, até para esclarecer para o público: as pesquisas já comprovaram que a CoronaVac é segura e produz resposta imune, não é?
Isso é uma pergunta excelente porque, de fato, a gente tem tido muita informação desencontrada e informação falsa, mas a CoronaVac é segura. A gente tem os dados de segurança publicados em agosto de 2020. Eles são públicos e estão disponíveis. Qualquer um pode pesquisar os dados, que já passaram por avaliação, foram aprovados e não têm nenhuma inconsistência e nenhuma das aplicações da vacina causou qualquer tipo de resposta grave.
Como eu falei, acompanhando basicamente todas as outras vacinas que a gente já tem, desenvolvidas com tecnologia semelhante, as consequências são geralmente locais e rápidas. Um a dois dias depois da vacinação, o indivíduo tem dor no local, febre leve, mas nada mais grave do que isso. Além disso, os dados de anticorpos da CoronaVac também já estão publicados há bastante tempo, e esta semana tivemos dados de eficácia que estão acima da eficácia recomendada pela Organização Mundial da Saúde [OMS] pra vacinas que devam ser usadas em larga escala na população pra combater uma epidemia.
Apesar de esses públicos não terem os casos mais graves, a pandemia ainda bate à porta, e a gente ainda não vai ter essa vacina agora. É preciso manter cuidados? Que orientação dar para pais, cuidadores de crianças e acompanhantes de mulheres grávidas? É preciso manter as precauções sanitárias?
Sim, com toda certeza. A gente tem essa sensação de que a pandemia acaba com o início da vacinação, mas não é verdade, porque a gente não tem a capacidade de vacinar todo mundo ao mesmo tempo. Então, a gente vai ter ainda circulando por um tempo indivíduos que foram imunizados, indivíduos que não foram imunizados e os que ainda não desenvolveram resposta.
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Por isso, mesmo com a vacinação em andamento, é fundamental que a gente tome medidas sociais que já se mostraram aptas a controlar a disseminação do vírus — uso de máscara, distanciamento social, evitar aglomerações, priorizar atividades essenciais. Todas essas medidas são fundamentais e, provavelmente, terão que ser adotadas até que a gente tenha imunizado uma quantidade suficiente de pessoas.
Diante desse cenário todo que a gente tem, você acha que já é possível se retornar às aulas? Você tem uma opinião sobre isso, na condição de cientista?
O que a gente tem visto, até agora, é que crianças, de fato, não parecem ser uma população com risco de ter complicações da covid-19. Em 2020, a redução das atividades escolares ao redor do mundo causou um impacto severo no desenvolvimento dessas crianças. A gente sabe que uma das medidas que a gente tem que priorizar assim que tudo estiver seguro é o pleno retorno às atividades educacionais.
Por ora, apesar de ainda não termos tido a vacinação nem controlado a disseminação do vírus na população, é importante que se discuta, sim, a retomada de atividades educacionais, mas observando todos os cuidados que a gente pode tomar. Isso vai desde redução da quantidade de alunos numa sala de aula, isolamento de uma turma onde haja casos positivos, pais que têm casos positivos em casa precisam ser responsáveis em não enviar seus filhos pra sala de aula porque isso é uma das coisas que a gente poderia fazer.
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É claro que é complicado assumir isso e também assumir outras medidas de flexibilização. Então, isso é o tipo de medida que pode vir a funcionar pra suprir esse déficit educacional que 2020 gerou, mas que precisa ser tomado em conjunto com outros órgãos e a sociedade precisa entender o papel disso frente a outras atividades que já estão sendo flexibilizadas e que não são necessárias, como aglomerações, presença em parques, praias, festas, etc.
Edição: Camila Maciel