O gosto da liberdade é o da luta e do encontro
Antes de começar, gostaria de dizer que escrevi este texto na pior semana da pandemia, quando Manaus, no pulmão do mundo, sufocou com a falta de oxigênio, planejamento, organização e logística do governo.
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Um dia eu vou acordar bem cedo, já meio nervosa pelos acontecimentos que ainda vão se desenrolar. Vou trabalhar tensa, com um frio na barriga e uma ansiedade completamente justificável. Meio-dia e o expediente acaba.
Logo em seguida, vou pegar o metrô e descer no Largo da Batata, em Pinheiros, São Paulo. Vai estar começando a encher de gente, com o sol ainda brilhando. Os balões da CUT já estarão no ar, o Levante Popular da Juventude vai ter começado a batucar algumas músicas, as bandeiras vermelhas vão estar de pé e o pessoal ansioso, mas animado. A polícia, de butuca, olha feio. Várias rodinhas de amigos, conhecidos e desconhecidos, sorridentes discutindo política. A postos, o pessoal com camiseta do MTST e do MST, uns com bonezinho vermelho, outros com um chapéu de camponês. Num outro canto, um pessoal com o macacão laranja dos petroleiros da Petrobras.
Camisetas das mais variadas vertentes políticas, com muitos dizeres políticos e reivindicações. São coloridas, lilás, amarelo, branco, verde e principalmente vermelhas. Muitas são feitas manualmente, de forma artesanal, e são vendidas em banquinhas improvisadas espalhadas pela praça. O cheiro de churrasquinho se espalha no ar, enquanto vendedores ambulantes de cerveja se misturam com a multidão. Alguns pipoqueiros vendem suas mercadorias – pipocas brancas, salgadas, e vermelhas, doces. Anoitece.
A multidão que se espalha pelo bairro, ansiosa pela partida, pela marcha, pelas palavras de ordem. Em pouco tempo, começa a cair uma garoa fina e esfria, como em muitos outros dias em São Paulo. Começamos a andar. Estamos subindo a Rebouças lentamente. A subida é dura, mas ninguém desiste. A música aumenta – na verdade, são vários grupos já espalhados pela manifestação.
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Pipoqueiros, vendedores ambulantes e churrasqueiros acompanham alegremente a marcha. Paro um pouco, embaixo de uma árvore, pra ver o nosso tamanho, a quantidade de pessoas que estão juntas. Passam amigos animados, beijos, abraços, diálogos rápidos, conversas sobre política. Do outro lado da avenida, alguns carros, num congestionamento monstro, buzinam dando apoio.
A marcha engata, todo mundo toma fôlego pra subida final. São 19h30. O espigão da Paulista é vencido lentamente. Já vemos o Hospital das Clínicas, a ladeira final é cruel. Em pouco tempo, subimos. Num último fôlego, viramos uma rua e chegamos. O Masp já é avistado, e o caminho é reto. A multidão se dispersa. Todo mundo conversa, alegre e aliviado, pois a polícia se comportou e não bateu em ninguém.
O gosto da liberdade é o da luta e do encontro. Muitas outras escritoras se debruçaram sobre a comida e sobre períodos de escassez, peste ou guerra. MFK Fisher falou sobre a falta de manteiga, de provisões, de racionamento nos Estados Unidos da Segunda Guerra Mundial. Alice B. Tocklas relatou sua vida culinária com Gertrude Stein na Zona de Vichy quando os alemães ocupavam a França. Todas escreveram sobre memórias e desejos de liberdade num tempo de muitas restrições.
O sonho, as vontades e o futuro muitas vezes foram retratados em forma de comidas inatingíveis. Já para mim, a liberdade e o futuro têm o gosto de churrasquinho, de cerveja e de pipoca, de um dia especial, de luta e manifestação. Feliz ano novo.
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* Joana Monteleone é editora e historiadora; autora dos livros "Toda comida tem uma história" (Oficina Raquel, 2017) e "Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo" (Alameda Casa Editorial, 2015).
Edição: Camila Maciel