A América Latina foi uma das últimas regiões a registrar casos de covid-19 e hoje é um dos continentes mais afetados pela pandemia. Apesar da situação generalizada de crise econômica e sanitária, que levou a uma retração de - 7,7%, segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), há diferenças na região.
O Brasil, que registrou o caso zero no dia 26 de fevereiro, segue entre as três nações com maiores números de contagiados e mortos pela doença. Já são mais de 7 milhões de casos e 187 mil vítimas fatais.
Já o Peru se mantém há quatro meses como a nação latino-americana com maior índice de mortalidade. São 115,9 mortes a cada 100 mil habitantes, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.
No entanto, entre países vizinhos a situação pode ser bastante diferente. Ao sul, o Uruguai acaba de ultrapassar os 13 mil casos e 119 óbitos. Ao norte, a Venezuela mantém um dos menores índices de mortalidade, com 3,4 mortes a cada grupo de 100 mil habitantes, logo atrás de Cuba, que mantém a menor taxa da região: 1,2 falecidos por cada 100 mil habitantes.
"É um continente marcado pelas desigualdades. O primeiro contraste é a responsabilidade maior ou menor dos governantes de cada um desses países, no sentido de alinhar o país para o enfrentamento dessa situação que é uma emergência sanitária", sinaliza Lúcia Souto, presidenta do Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (Cebes).
A epidemiologista e pesquisadora associada do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cidacs-Fiocruz), Júlia Pescarini elenca algumas medidas sanitárias que podem ser identificadas como eficazes.
"Nessa questão do distancimento social, o que ficou evidente na maioria dos países que tiveram sucesso foi ter um discurso único por parte do governo. São países que também fizeram testagens massivas, o que permitiu o isolamento de novos casos. Então destacaria esses três pontos: isolamento social, testagem e o uso de máscara", afirma.
O governo do Uruguai não adotou medidas rígidas de distanciamento social por muito tempo. As fronteiras permanecem fechadas para estrangeiros, mas as aulas foram retomadas e a quarentena está suspensa a nível nacional.
Pelarini aponta que o discurso unificado das instituições públicas sobre a importância do isolamento social desde o início da pandemia acabou sendo eficaz na conscientização da população.
Lúcia Souto reforça que o quadro é diferente "quando o dirigente tem uma comunicação tóxica, e ao invés de unir, divide, coloca dúvidas sobre a vacinação ou ações baseadas em argumentos científicos, como é o caso do Brasil".
Somente durante a gestão do atual ministro de saúde, Eduardo Pazuello, o número de infectados aumentou 30 vezes, enquanto as mortes se multiplicaram 12 vezes no Brasil.
Ciência à favor das demandas populares
Enquanto isso, Cuba possui, até o momento, pouco mais de 10,2 mil infectados e 137 mortes. O isolamento social adotado logo no início de abril, com o registro dos primeiros casos, o acompanhamento casa a casa, assim como o fechamento das fronteiras formam um conjunto de políticas que, comprovadamente, funcionaram.
A biomedicina cubana também desenvolveu o Interferon Alfa 2B - um medicamento que já era usado para combater outras doenças e se tornou um dos mais efetivos no tratamento com pacientes em estado moderado de covid-19.
Além disso, a ilha é o único país latino-americano e caribenho a ter uma vacina em fase final de testes clínicos. A expectativa é de que a Soberana 01 possa ser utilizada em janeiro de 2021. Paralelamente, o país estuda outras três fórmulas que podem ser candidatas a vacinas.
Um aspecto comum entre Cuba e Brasil é a existência de um sistema público e universal de saúde. No entanto, no caso caribenho, toda a atenção em saúde esteve voltada para conter a emergência sanitária no território nacional e internacional. Com a Brigada Henry Reeve, 53 países receberam contingentes de profissionais de saúde cubanos para conter a disseminação da covid-19.
Cuba e Venezuela também já anunciaram a criação de um banco de vacinas para distribuição prioritária aos países da Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América (Alba-TCP), entendendo que o medicamento deveria ser considerada um bem público.
"O que o sistema público traz não é só a vantagem de saber lidar com o problema. Tendo um sistema público, como o do Brasil, contribuiu para que todas as pessoas tenham acesso. Mas o principal é que esse acesso seja mais equitativo", levanta a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e membro da Rede CoVida, Júlia Pescarini.
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"Nós teríamos tudo para liderar uma ação latino-americana, porque temos o SUS, um sistema universal de grande competência, com uma tradição histórica com seu programa nacional de imunização para ajudar a organizar a logística e possibilitar o alcance de uma ação unificada centralizada e coordenada pelos Ministérios de Saúde", comenta Lúcia Souto.
Ambas especialistas concordam que a pandemia contribuiu para aumentar a confiança dos povos nos sistemas universais, que contemplam a saúde como um direito humano.
"Nessa encruzilhada em que a humanidade se encontra, com uma crise civilizatória de dimensões épicas, ela precisa ser enfrentada com um projeto que se contraponha à barbárie", avalia Souto.
Economia X Saúde?
A oposição entre saúde e economia também foi outra temática permanente nos discursos de governantes de direita em toda a América Latina. Sob a justificativa da necessidade de uma recuperação econômica, presidentes de países como Colômbia, Peru, Chile e Brasil expuseram a população a uma doença de alto contágio e, no entanto, não conseguiram reverter o quadro econômico.
A Cepal, inclusive, defendeu a necessidade de criação de projetos de renda mínima como garantia de sustento básico e cumprimento das medidas sanitárias para prevenir o avanço da covid-19.
Numa região sustentada pelo trabalho informal, a retração de do PIB representou a suspensão de 34 milhões postos de trabalho, quase todos de maneira permanente, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
"Medidas robustas de proteção social são estratégicas para viabilizar a recomendação do distanciamento social. Sem renda de cidadania não é possível as pessoas praticarem isso. É até um delírio", opina a presidenta do Cebes.
Nos países onde as administrações liberais não atenderam as populações mais vulneráveis, os movimentos sociais, sindicatos e organizações de esquerda deram exemplo de solidariedade.
O Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) distribuiu mais de três mil toneladas de alimentos a comunidades periféricas em várias regiões do Brasil, enquanto o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) distribuiu gás de cozinha para 130 famílias no sul do país.
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O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) organizou mutirões de distribuição de cestas básicas e produtos de higiene pessoal nas periferias de São Paulo e lançou a campanha de despejo zero durante o período pandêmico.
No Chile, Argentina e Uruguai, organizações comunitárias também realizaram refeições populares em praças públicas, ocupações urbanas e nas regiões mais empobrecidas do entorno das capitais.
"Precisamos aprender com essa pandemia que, sem solidariedade, sem compartilhamento, sem respeitar a natureza e construir um bem viver entre todos, não sairemos dessa crise", aponta Lúcia Souto.
Edição: Luiza Mançano