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Trabalhadores terceirizados da Vale denunciam abusos de poder na mineradora

Após a morte de Júlio Cordeiro, na sexta-feira (18), áudios e vídeos passaram a circular nas redes sociais

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Profissionais desabafam sobre a rotina de medo por trabalhar para a segunda maior mineradora do mundo. - Carlos Hauck

O turno de trabalho de mineradores terceirizados da Vale seguiu a rotina, neste sábado (19), em Brumadinho (MG), apesar de os funcionários se sentirem inconsoláveis com a morte do amigo Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos. Ele era contratado pela empresa Vale Verde, terceirizada da mineradora Vale, e foi soterrado na última sexta-feira (18) após um deslizamento de terra de talude na Mina do Córrego do Feijão. 

Um desses funcionários, que não quis se identificar, disse à reportagem do Brasil de Fato que, em vez de acolhimento e palavras de conforto, ouviram da chefia: “Vocês precisam saber que trabalham na mineração, numa área com risco de rompimento, e cada um de vocês precisa ter a consciência que, assim como Júlio, pode não voltar mais para casa”. 

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Há anos, o sentimento de medo é algo que acompanha o dia a dia dos trabalhadores da mineração e moradores do entorno, principalmente depois do crime da Samarco em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, que deixou 19 mortos e um impacto ambiental devastador. Quatro anos depois, o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro de 2019, matou 272 pessoas, sendo que 11 continuam desaparecidas. A maioria das vítimas teve a vida ceifada enquanto vestia a camisa das empresas.

O operador de retroescavadeira Júlio César é a vítima mais recente. Morreu por asfixia, segundo laudo do Instituto Médico Legal (IML) de Minas Gerais, depois do desmoronamento de parte da encosta de um talude, que é um plano de terreno inclinado construído para garantir a estabilidade do aterro e conter os rejeitos de mineração. Cordeiro era casado e pai de um bebê de quatro meses. No dia da morte, chovia na região e ele fazia a limpeza da barragem B1 da Mina do Córrego do Feijão.

De acordo com Tatiana Telles e Koeler de Matos, chefe da Divisão de Medicina Legal do Interior da Polícia Civil de Minas Gerais, o corpo da vítima deu entrada no Posto Médico Legal de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, como desconhecido. “Ao iniciarem os trabalhos de necropsia, encontraram um crachá e foram feitas diligências junto ao setor de saúde da empresa Vale, no sentido de se contactar a família para que esta comparecesse ao IML para o reconhecimento do corpo, que ocorreu na manhã de sábado (19)”. 

A família de Cordeiro vive na cidade de Santa Luzia (MG) e o trabalhador estava alojado em Mário Campos, que faz divisa com Brumadinho, há pelo menos 15 dias. 

Rotina dos trabalhadores da mineração

Amigos da vítima relatam o medo de seguir na mineração. Emocionado, um dos trabalhadores, em áudio* que circula em grupos de trabalhadores e que foi enviado ao Brasil de Fato, fala sobre o perigo de trabalhar na área.

“Eu falei, eu já tinha avisado ao meu supervisor. Os engenheiros falaram que a gente podia subir. Essa chuva que deu ontem avacalhou o trem todo. Esse trem tá perto de estourar de novo, esse demônio desse trem. Que raiva desse demônio desse trem, essa empresa aqui não presta, não”, desabafa. 

Dias antes da morte desta sexta-feira, outro trabalhador registrou seu pavor, por meio de um vídeo*, diante dos riscos da atividade minerária. Ele pede que sua família guarde seu depoimento como prova da violência invisível que sofre a cada dia na mineração em Brumadinho.

“Estou fazendo esse vídeo aqui pra me precaver. Se acontecer qualquer coisa, vocês mandam pra minha família, minha mãe. Isso é um absurdo, essa barragem aqui, olha. O trem está todo encharcado. Olha aonde que eu estou, esse inferno aqui, olha. Isso aqui é o inferno, isso aqui não pode existir não. Olha isso aqui, olha lá. ‘É os primeiro’ a morrer. Mas infelizmente precisa, né? Precisa. Se vocês não conhecem o inferno, é só vir aqui”, declara.

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Segundo Marta Freitas, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), historicamente, as mineradoras não zelam pela segurança adequada dos seus trabalhadores e infringem leis. “A mineração é o lugar mais perigoso do mundo para se trabalhar. No caso do Brasil, a chance de você morrer na mineração é três vezes maior do que em qualquer outra atividade. As condições de trabalho são péssimas, mesmo nas grandes empresas, que têm programas internacionais e certificados. Na prática, elas não respeitam a legislação”, denuncia. 

Ainda de acordo com Freitas, as mineradoras descumprem sistematicamente a norma NR 22, que regulamenta a segurança e a saúde ocupacional de trabalhadores da mineração. 

“A norma prevê, por exemplo, que o trabalhador tenha o direito de se recusar a realizar uma atividade caso se sinta em risco na operação. Mas recusar como? Ele tem que falar com o chefe e, se o chefe não concordar, precisa falar com outro de maior grau na hierarquia. Quem avalia se você vai ou não continuar como terceirizado? Trabalhar em mineração significa ter direitos negados. Um deles, que a Organização Internacional do Trabalho aponta é exatamente essa opressão, o desrespeito, o assédio”, conclui.

Violência Invisível

Cordeiro morreu na mesma data em que foi aprovado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) o projeto de Lei 1200/15 que qualifica os direitos e a luta da população atingida por barragens. Apesar da vitória, Minas Gerais ainda está longe de comemorar avanços concretos na legislação. 

Meses depois da ruptura da barragem B1, em Brumadinho, em julho de 2019, outro trabalhador gravou um vídeo* na barragem B6, onde uma obra seria feita, denunciando os riscos que poderiam envolver a intervenção. O material foi enviado diretamente à reportagem do Brasil de Fato.



“Eles estão querendo que a gente faça um corte de 13 metros de profundidade. Tem uma sonda em cima, bem no talude, tem uma sonda embaixo, no pé do talude, onde vai iniciar o corte, que vai até o encontro do talude da B6. Estou trabalhando com medo. A barragem 6 tá tranquila no momento, mas o que sobrou da 1, na sexta, teve uns tremores de 2 graus. Lá em cima, na ombreira esquerda. Estou com medo”, afirma.

A obra chegou a ser paralisada depois de denúncias, mas foi retomada com acompanhamento de auditores do Ministério Público de Minas Gerais e do Corpo de Bombeiros. Nenhum acidente foi registrado no local. Segundo apurou a reportagem, esse trabalhador decidiu deixar o serviço por medo de morrer durante a atividade.

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Recomeço

Em 25 de janeiro de 2019, Reinaldo Augusto das Chagas, aos 41 anos, viveu o pior dia da sua vida, e renasceu da lama. Ele dirigia um caminhão-pipa de uma empresa terceirizada e estava dentro da área da mineradora Vale no momento do rompimento da barragem B1. Ele é um dos 64 sobreviventes da tragédia. 


Reinaldo Chagas sobreviveu ao rompimento de Brumadinho (MG), ao retornar ao trabalho na terceirizada da mineradora também se deparou com abusos e saiu da empresa / Carlos Hauck

Reinaldo diz que sentiu o chão tremer e viu a avalanche de rejeitos passar por cima de colegas que gritavam por socorro. Mesmo depois de quebrar o pé na tentativa de fugir, ele conseguiu continuar correndo, com o apoio de um sobrinho, que pedia para que ele não desistisse. Reinaldo se emociona ao lembrar do sentimento de impotência por não ter conseguido salvar os amigos.

“Depois que souberam que havia sobreviventes, a mineradora mandou um ônibus para buscar a gente. Me deixaram no ponto e eu caminhei até minha casa, como se fosse um dia qualquer de trabalho. Andei um quilômetro, por meia hora, com a roupa completamente suja de lama e o pé quebrado. Ao chegar à rua, uma surpresa: todos estavam me esperando. Foi muito emocionante!", conta, lembrando que passou 6 horas sem contato com a família, ainda nas instalações da Vale.  


A foto, postada pela irmã de Reinaldo nas redes sociais, mostra a chegada do trabalhador e de seu sobrinho sobreviventes.   / Reprodução

Reinaldo relata que até hoje não foi chamado pela Vale para passar por nenhum exame médico e que foi convocado para voltar ao trabalho menos de uma semana após a tragédia. Em um momento após seu retorno, no refeitório, ele teria escutado críticas de um gestor devido à tristeza e ao abatimento da equipe. “Ele falou pra gente que quem morreu, acabou. Quem ficou tinha que trabalhar e deixar o passado para trás. Eu fiquei revoltado”, relata.

Uma revolta que levou o trabalhador a deixar de vez a mineração e investir em outro caminho, segundo ele, mais seguro e digno. Abriu um lava-jato, onde trabalha diariamente, com a ajuda da família. Ele veste o uniforme usado no dia do desastre. “Eu uso como um amuleto de sorte. Me lembra da minha força naquele momento. Eu não desejo aquilo para ninguém”.

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A morte de mais um trabalhador é, para Reinaldo, a comprovação de uma tragédia anunciada. “Já havia rumores de que o local era instável. O banco já estava desabando, e eles estavam arrumando. Sabiam do risco, o que demonstra, mais uma vez, a imprudência. Aí a gente se pergunta: até quando as pessoas vão precisar morrer e as famílias chorar a dor da perda dos seus parentes?”, questiona.

Sindicato diz ter alertado a Vale 

Segundo Eduardo Armond, diretor do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada de Minas Gerais, desde o ano passado, reuniões são solicitadas à Vale. O objetivo desses encontros seria discutir a situação de segurança e saúde dos trabalhadores em todas as suas áreas de atuação. 

“Em especial, queremos o cumprimento da NR 22. Até hoje não conseguimos retorno da mineradora para composição das comissões de situação de trabalho. Nós avisamos que, com as chuvas, a tendência era ocorrer outra tragédia. Nosso desejo era o de prevenir, solicitar urgentemente que o ritmo de trabalho diminuísse e tivesse acompanhamento do sindicato, mas a Vale não nos retornou ainda”, afirma.

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Sobre as denúncias de assédio por parte de gestores da Vale para que funcionários cumpram suas atividades, mesmo que abalados psicologicamente, Armond afirma que tais relatos são recorrentes. “Sei que denúncias de assédio por parte de lideranças das terceirizadas são comuns. O que acontece é que a Vale pressiona as terceirizadas e essas reproduzem o assédio”, argumenta.

Neste domingo (20), o  sindicato informou que a nova solicitação para composição da comissão de situação de trabalho na mineração foi atendida pela Vale. A reunião foi marcada para esta segunda-feira (21). 

Os alvarás de funcionamento e localização da Vale e de suas terceirizadas na cidade estão suspensos por um decreto da prefeitura de Brumadinho. Segundo o documento, o objetivo é que as causas da morte possam ser esclarecidas e "garantidas as condições de segurança para os trabalhadores que atuam no local”.

Até o fechamento desta reportagem, a assessoria de imprensa da mineradora não atendeu às ligações e solicitações de resposta enviadas por e-mail pelo Brasil de Fato.

*No áudio e nos vídeos desta reportagem, o Brasil de Fato distorceu a voz dos trabalhadores para preservar suas identidades.
 

Edição: Vivian Fernandes