Cinco anos após o crime da Samarco em Mariana (MG), as famílias dos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira – as três comunidades mais devastadas pela lama da Barragem do Fundão – ainda não têm uma casa própria.
“Já morreu gente que não vai ver a casa lá. E muitos vão acabar morrendo sem ver", lamenta o agricultor Antônio Geraldo de Oliveira, ao caminhar entre as cadeiras soterradas e os livros infantis da antiga escola de Paracatu de Baixo, a 35 km do centro da cidade. Ele vive em uma das poucas casas que sobraram após a lama destruir o vilarejo centenário.
No dia 5 de novembro de 2015, a Barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela BHP Billiton, rompeu e despejou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro ao longo de toda a bacia do Rio Doce ate chegar ao Oceano Atlântico.
A lama tóxica que destruiu as comunidades centenárias em Minas Gerais matou 19 pessoas, contaminou 663km do Rio Doce e condenou aproximadamente 700 mil pessoas de 43 municípios ao empobrecimento pelo impacto aos seus modos de vida.
No total, são 342 núcleos familiares que aguardam a construção de reassentamentos coletivos sob responsabilidade da Fundação Renova, constituída pelas mineradoras para gerir a reparação das áreas destruídas pelos rejeitos de mineração. Enquanto isso, vivem em moradias temporárias alugadas pela fundação na zona urbana de Mariana.
Até agora, nenhuma das empresas ou responsáveis foram punidas pelo caso, que já corre como crime de inundação, e não de homicídio ou lesão corporal, o que impede o julgamento de ir a júri popular.
Remanescentes nos territórios, famílias como a de Antônio são exceções. Em geral, são famílias de agricultores que refutam a vida na cidade e preferem o campo, mesmo com a poeira tóxica, o pouco acesso a energia elétrica e os frequentes furtos.
"Aqui não tinha violência, ninguém nunca matou ninguém, todo mundo era amigo do outro. Agora ficou difícil demais", lamenta o atingido.
As obras da nova comunidade de Paracatu de Baixo estão em andamento, mas não há nenhuma casa construída, somente a terraplenagem das vias de acesso e das áreas dos lotes para as 98 famílias.
O distrito, que fica às margens do Rio Gualaxo do Norte, perdeu um centro histórico com ruas, imóveis, o Bar do Jairo, o campo de Futebol, a Igreja de Paracatu, e equipamentos públicos, como o posto de saúde e a escola. Todos os escombros foram apresentados por Antônio ao Brasil de Fato: "O homem acaba com tudo".
Atraso e moradias precárias
O prazo para entrega dos projetos já passou por três adiamentos. A primeira promessa da Fundação Renova foi em março de 2019. Após os sucessivos descumprimentos, a 2ª Vara da Comarca de Mariana determinou o dia 27 de agosto de 2020 como data limite para conclusão. Caso também não seja cumprida a pena será uma multa diária de R$ 1 milhão à entidade guiada pelas mineradoras. Hoje o prazo é 27 de fevereiro de 2021.
"Está claro que não fica pronto em fevereiro de 2021, nenhum dos três reassentamentos da forma como estão hoje. Bento Rodrigues com pouquíssimas casas. Paracatu de Baixo e Gesteira sem nenhuma casa", explica Letícia Oliveira, do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB).
Além das três comunidades, há também famílias de outras áreas devastadas que participam do programa de reassentamento. Ao todo são 512 núcleos familiares, sendo 468 em Mariana, 43 em Barra Longa e um em Santa Cruz do Escalvado.
Até o momento, porém, apenas nove foram reassentadas pela Renova, em análise feita pela consultoria Ramboll, a pedido do Ministério Público Federal (MPF).
Quanto às moradias temporárias alugadas pela Fundação Renova, o MPF constatou que 63% delas, no município de Barra Longa (MG), estão com algum tipo de inadequação, por estarem localizados em áreas de risco ou por apresentarem problemas relacionados à falta de habitabilidade. Em Mariana, a porcentagem é de 48%.
"Estes três reassentamentos coletivos são os três em que, com luta, os atingidos conseguiram ser reconhecidos e que são comunidades que foram completamente destruídas, por isso a pressão é maior", afirma a militante do MAB.
"Mas, na verdade, há um grande número, mais de 500 moradias em toda a área rural de Mariana e Barra Longa que deveriam ser ou construídas novas moradias ou reformadas", completa.
Bento resiste
Em Bento Rodrigues, a 6 km da Barragem do Fundão e o primeiro distrito a ser atingido pelos rejeitos, a construção do reassentamento está um pouco mais avançada e atenderá 210 famílias. Segundo a Fundação Renova, as obras de infraestrutura e das áreas coletivas estão na fase final, como a pavimentação da estrada de acesso, além da energia elétrica, redes de água e esgoto, que seguem para conclusão.
"Ela fala que o tempo é curto para fazer os reassentamentos, a indenização e restituir tudo que nos foi tirado, mas quando a Samarco chegou para a região em dois anos foram construídas a planta do complexo de Germano, duas vilas, a Vila Samarco e a Vila de Ubu, um mineroduto ligando Minas ao Espírito Santo, várias estradas e a Barragem de Germano", conta Mauro Marcos da Silva, que teve a casa destruída em Bento Rodrigues, e junto a outros oito moradores, integra a Comissão de Atingidos que fiscaliza a construção do projeto.
No âmbito judicial, os reassentamentos de Paracatu e Bento Rodrigues são acompanhados pelo Ministério Público Estadual, cuja atuação tem sido importante para acelerar a construção dos projetos. A primeira casa foi erguida no dia 29 de julho.
Nas negociações sobre a construção do reassentamento coletivo, uma das exigências da Renova era ter a posse dos imóveis soterrados em troca da construção. Os moradores de Bento Rodrigues foram contra, organizaram protestos e permanecem como donos de seus patrimônios materiais, mesmo que em ruínas.
Hoje, Mauro e outros atingidos não abrem mão da história no local. Criaram o grupo Loucos por Bento e costumam voltar às ruínas aos finais de semana para celebrações religiosas e reconstrução das casas.
"Eu costumo dizer que meu umbigo está enterrado em Bento. Então a minha relação com Bento jamais vai se apagar. Hoje com o que aconteceu em Brumadinho, eu vejo que se tivesse morrido todo mundo em Bento seria mais cômodo para a Samarco. Porque a indenização de vidas é mais fácil do que construir comunidades”, aponta o comerciante, que trabalha em uma oficina mecânica no centro de Mariana e aguarda a construção do Novo Bento.
Até o crime, a mineração era responsável por garantir emprego e renda à população do vilarejo, o que não impedia também o cultivo e subsistência de agricultores familiares nas terras férteis às margens do Rio Gualaxo do Norte – com destaque para a cooperativa de mulheres que produzia a geleia de pimenta biquinho, um símbolo da região.
"São anos que estão sendo roubados, a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo, é um tempo precioso que está sendo roubado da vida de cada um de nós. O crime não foi só em 5 de novembro de 2015, é um crime que continua se renovando", lamenta Mauro.
A luta de Gesteira
Em Gesteira, distrito de Barra Longa, o atraso vem causando sofrimento às famílias. Isto porque, o projeto de reassentamento coletivo foi encaminhado após muita luta por parte dos atingidos e hoje corre o risco de não sair do papel.
Vera Lúcia Silva, que pertence a Comissão de Atingidos, está entre uma das 20 famílias que deixaram Gesteira. “A comunidade vai perdendo a fé, está desaprendendo como é estar unido”, relata a atingida, que no dia do rompimento conseguiu correr com o marido para cima do morro, de onde viu tudo que construiu em 43 anos sendo levado em 20 minutos pela avalanche de rejeitos.
Na comunidade, ela tinha um salão de beleza domiciliar, era funcionária pública, fazia biscoitos para vender e com mais oito mulheres organizava as festas religiosas e uma cooperativa de doces no antigo Salão Comunitário.
Hoje, conta que mesmo antes da pandemia, ela e o marido já quase não saiam da casa alugada pela Renova no bairro Cabanas, periferia de Mariana. Segundo Vera, apenas algumas idas esporádicas ao mercado e ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Hoje, os dois só dormem com remédios.
"Eu tinha minha renda, sem depender de ninguém, sem depender de provas. Porque várias vezes eles [Renova] pediram provas para me reconhecer com um salário mínimo", conta Vera, que costumava ir a Gesteira para reuniões com a Renova.
A Renova e o juiz
A compra do terreno no distrito de Gesteira foi feita em 2018. Inicialmente a área sugerida pela Renova para receber o reassentamento das 37 famílias – incluindo as que eram donas de terrenos atingidos – tinha sete hectares, o mesmo tamanho da área atingida pelo rejeito.
Mas a Comissão de Atingidos contestou que a área não era fértil para o cultivo das famílias e impossibilitaria uma volta às atividades produtivas nas roças. Para contrapor a proposta das mineradoras, foi construído o Projeto Popular do Reassentamento de Gesteira, que ampliou o terreno para cerca de 40 hectares.
Em maio de 2020, o projeto conceitual feito pelos atingidos com auxílio da Assessoria Técnica e do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (GEPSA) foi finalmente concluído e protocolado para homologação na 12ª Vara Federal de Minas Gerais, o que ainda não aconteceu até agora.
Embora colocada como um dos eixos prioritários pelo juíz da 12ª Vara para o caso Rio Doce, a proposta "dorme em berço esplendido", como define o procurador do Ministério Público Federal (MPF) Helder Magno da Silva.
Hoje, a Renova afirma que aguarda a definição do juiz Mário de Paula Franco Júnior para prosseguir com os trabalhos. Enquanto isso, segundo o MPF, a Fundação atua para desarticular o projeto, buscando negociar com as 37 famílias no âmbito do programa de Indenização Mediada, que são os acordos individuais, em geral, tratados com mais agilidade pelo judiciário.
Na semana passada, o juiz homologou oito destes acordos, que foram firmados sem a intimação do MPF.
"As pessoas estão sendo levadas a adquirir moradias fora do ambiente em que elas viviam. Não é simplesmente a casa que elas vão morar, vão conviver, vão ter os espaços de lazer, o campo de futebol, a igreja. Tudo o que representa uma vida em comunidade. As empresas e a Fundação Renova tem agido para destruir estes laços, para criar cisões", explica o procurador da República, em coletiva de imprensa realizada no dia 29 de outubro pelo órgão federal.
Terra
No distrito foram justamente os espaços coletivos que foram destruídos. Além de onze lotes, estavam o salão comunitário, a Igreja de São Bento (construída em 1718), a escola, a venda, o campo de futebol, entre outras residências.
"Tinha minha horta, e tudo isso para mim era trabalho, diversão. Eu sinto muita falta. Porque a casa aqui nem quintal tem. Aqui não tenho um palmo de terra pra mim pisar. Sendo que vim da terra, me criei da terra, a terra me faz bem", revela Vera.
A Fundação Renova foi criada em março de 2016, por meio de um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado entre as mineradoras, o governo federal e os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Dentre suas responsabilidades, a maioria não cumpridas, estava a execução de 42 programas de reparação socioeconómica e ambiental e a reconstrução das comunidades destruídas pela lama.
"A demora da Fundação Renova está acabando com o povo e com a saúde de todo mundo. A gente deita na cama e não dorme. Até hoje eu sou moradora de Mariana, mas o Gesteira não sai de dentro de mim", desabafa Vera.
Outro lado
Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Renova diz prever que até o fim de 2020, 95% da infraestrutura dos reassentamentos de Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues devem estar concluídas e que os projeto foram construídos "com a participação ativa dos futuros moradores". Afirma também que foram investidos nos reassentamentos R$ 1 bilhão até agosto de 2020, e que atualmente, um número de 1.500 trabalhadores atuam nas obras.
Quanto ao processo de construção do Reassentamento de Gesteira, a Renova não enviou informações sobre o andamento do projeto.
Edição: Leandro Melito e Marina Duarte de Souza