Ditadura?

Artigo | A Venezuela dá aula de democracia para os Estados Unidos

As eleições da Assembleia Nacional da Venezuela estão marcadas para o dia 6 de dezembro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Mais de 20 milhões de venezuelanos deverão eleger os deputados que ocuparão o Poder Legislativo nacional - Michele de Mello / Brasil de Fato

No último mês, todo o mundo se voltou para observar as eleições nos Estados Unidos, e muito foi dito a respeito de seu sistema eleitoral. O país que se considera a maior democracia do mundo segue despertando a reflexão e os questionamentos se esse sistema eleitoral permite, de fato, que a vontade da maioria da população seja definidora dos resultados. Após um mês, haverá eleições legislativas na Venezuela, no próximo dia 6 de dezembro, fato que também tem despertado muito debate sobre o modelo eleitoral do país.

Quando a grande mídia aborda o tema da democracia, sempre a partir da perspectiva da democracia liberal, o caso da Venezuela é frequentemente analisado como um regime ditatorial e antidemocrático. Esta caracterização difundida pela mídia tradicional tem um marco temporal definido: a eleição de Hugo Chávez para presidente da Venezuela, em 1998, que deu início a um governo notadamente anti-imperialista.

Em face dessa relação controversa entre democracia e ditadura, é interessante observar o funcionamento dos sistemas eleitorais nesses dois países, assim como as narrativas que se constroem em torno de cada um deles.

Com relação à Venezuela, um primeiro ponto a ser considerado é que analisar o sistema eleitoral do país é indissociável de uma análise mais ampla de uma série de mecanismos democráticos que não se restringem aos processos eleitorais, apesar destes ocuparem papel fundamental. Os mecanismos de participação popular da democracia venezuelana foram aprofundados desde a eleição de Hugo Chávez e o processo da Assembleia Constituinte que construiu a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999, e enterrou um pacto entre oligarquias, o Pacto de Punto Fijo, que vigorou no país durante quase meio século.

Alguns exemplos concretos demonstram como os instrumentos democráticos no país foram aprofundados, alavancando a participação política das classes populares. A Venezuela possui o instrumento do referendo revogatório, uma forma do exercício democrático na qual o povo decide sobre a manutenção ou não do mandato de um governante eleito anteriormente. O referendo pode ser convocado pela própria população e funciona através de votação direta, a partir da concepção de que só o povo pode destituir seus governantes. O primeiro Referendo Revogatório aconteceu em 2004, no qual 49% dos votantes decidiram pela continuidade do mandato de Chávez.

A Constituição também prevê uma série de outros mecanismos plebiscitários e referendários de amplo espectro, que podem ser convocados pelo presidente, mas também pela população.

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No que tange à divisão de poderes, além do Legislativo, do Judiciário e do Executivo, há o Poder Eleitoral e o Poder Moral, com o objetivo de evitar que o Judiciário concentrasse funções de maneira desproporcional, como ocorre no Brasil, por exemplo.

O Poder Eleitoral garante a organização e a fiscalização das eleições de forma independente dos outros poderes. E o Poder Moral é uma espécie de tribunal que apura crimes éticos e de corrupção. Além disso, há o incentivo à formação de organizações da base, os Círculos Bolivarianos e os Conselhos Comunais, que foram construídos como espaços de participação política direta nas comunidades, por meio do exercício direto de políticas públicas e projetos construídos com base nas demandas do povo.

Esses mecanismos têm como objetivo o aprofundamento da participação popular na decisão sobre os rumos da nação. Desde a eleição que elegeu Chávez, em 1998, até 2020, a Venezuela já passou por 24 processos eleitorais e plebiscitários, na contramão dos que ainda afirmam que o país vive uma ditadura.

Enquanto protagoniza episódios de ingerência externa nos países da América Latina, contraditoriamente, os Estados Unidos possuem um sistema político com muitas brechas. A começar pelo modelo de votação indireta, que faz com que o presidente seja eleito não pela maioria dos votos da população, mas pela maioria dos votos de 538 delegados que compõem os colégios eleitorais em cada estado do país. Mesmo que os votos populares sejam maioria para um candidato, ele pode não ser eleito – como aconteceu nas eleições de 2016, na qual Hillary Clinton teve quase 3 milhões de votos a mais que Donald Trump e não venceu as eleições, pois não obteve o maior número de delegados.

É preciso perguntar: que democracia é essa dos Estados Unidos, autoproclamada a maior entre todas, na qual o povo não pode escolher diretamente seu representante? Além disso, nas eleições estadunidenses, não há um órgão nacional que centralize, fiscalize, organize e divulgue o resultado do pleito, como ocorre no Brasil com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou na Venezuela com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE).

Com essa ausência, o resultado das eleições presidenciais dos EUA é divulgado pela mídia de uma forma extrainstitucional. Isso abre muitas brechas para judicialização dos pleitos em nível estadual, já que cada estado tem autonomia para organizar as regras do processo eleitoral e da contagem.

Ainda é importante lembrar que a origem desse sistema  tem relação com o período escravocrata. Segundo o professor Marcos Queiroz, em entrevista ao Alma Preta, quando a Constituição estadunidense foi elaborada, em 1787, os estados do Sul – que eram escravistas – queriam que os escravos fossem incluídos na contagem da população, mas não tivessem o direito ao voto, já que não eram “cidadãos”. Os estados do Norte rejeitavam essa ideia. Assim, foi feito um acordo chamado "pacto com o diabo", no qual cada escravo equivaleria a três quintos de um homem livre como parâmetro para representação no Congresso e, além disso, foi estabelecido o sistema eleitoral indireto por meio dos colégios eleitorais para sanar os impasses entre os estados do Sul e do Norte. A origem desse sistema nada tem a ver com o slogan de “maior democracia do mundo”.

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Por isso, é fundamental que fiquemos de olho nas narrativas construídas pelos veículos de comunicação sobre democracia e ditadura. Além disso, é necessário analisar as experiências concretas, considerando o contexto internacional no qual estão inseridas. No caso da Venezuela, a Revolução Bolivariana insere-se em um contexto de profunda ofensiva imperialista. Na América Latina, as "balas de Washington" têm Caracas como alvo central.

O que está em jogo na Venezuela?

As eleições legislativas venezuelanas que se aproximam acontecerão em um momento muito importante da conjuntura do país. Sabemos que, desde a eleição de Hugo Chávez, e, sobretudo, após a sua morte, em 2013, a Venezuela está sob permanente ataque do imperialismo, que, em aliança com setores da burguesia local, utiliza diferentes instrumentos para a desestabilização dos governos democraticamente eleitos pelo povo do país.

Entre os instrumentos, podemos citar: embargos econômicos criminosos, guerra cambial, guerra midiática, financiamento de ONGs que se dizem “defensoras da democracia” (financiadas através da USAID ou National Endowment for Democracy, por exemplo), e mesmo tentativas de invasão militar e financiamento de milícias internas (muitos são treinados em solo colombiano, como a vice-presidenta Delcy Rodriguez já denunciou na ONU).

Em 2020, mesmo a grave crise social, econômica e sanitária mundial, intensificada pela pandemia de covid-19, não foi razão suficiente para trégua nos ataques contra o povo venezuelano e sua soberania.

Nessas eleições, segue em jogo a continuidade e o respeito ao apoio popular que tem a Revolução Bolivariana, apesar de tantos ataques. Exemplo disso foi o incêndio criminoso que ocorreu no depósito do CNE, destruindo milhões de urnas eletrônicas que seriam utilizadas nas eleições legislativas deste ano.

Essas serão eleições legislativas que definirão os ocupantes das 277 cadeiras da Assembleia Nacional venezuelana. Vale lembrar que, para esse ano, como fruto da mesa de negociação que se estabeleceu entre governo e oposição foi definido o aumento em 110 cadeiras no parlamento – que antes totalizavam 167.

São cerca de 14.400 candidatos vindos de 107 partidos (98 de oposição ao governo) que tiveram garantido o tempo de um mês para realizarem as suas campanhas, contando com debates semanais entre os candidatos escolhidos pelos partidos transmitidos na TV aberta do país, além dos três representantes de comunidades indígenas que têm cadeiras na assembleia garantidas pela Constituição.

O Poder Eleitoral garantiu ao longo desse um mês a auditoria das candidaturas bem como dois momentos de simulação das eleições, para que os eleitores se familiarizassem com a urna eletrônica e novas medidas de biossegurança incorporadas em razão da pandemia.

No total, o processo eleitoral passará por 16 auditoriais. Além disso, a missão de verificação do Conselho de Especialistas da América Latina (Ceela), composta por especialistas em eleições, vem acompanhando tecnicamente o processo eleitoral desde o início de novembro. A missão acompanhou auditorias de urna eletrônica e se reuniu com delegados de todas as chapas participantes do pleito.

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O contexto de organização das forças políticas para essa eleição aponta para um cenário de polarização acentuada. O campo chavista sairá em duas chapas: o Grande Polo Patriótico e a nova Aliança Popular Revolucionária.

A oposição dividiu-se em três campos com posições distintas. A extrema direita, com partidos alinhados a Juan Guaidó, assume uma postura de abstenção e boicote às eleições. Quatro grande partidos da oposição, que afastaram-se de Guaidó, irão disputar as eleições por meio da Aliança Venezuela Unida.

Outra parcela da oposição disputa as eleições por meio da Aliança Democrática, um campo que reúne cinco organizações de centro-esquerda e centro-direita. A Aliança Democrática adota uma postura crítica ao governo, mas com o entendimento de que o respeito aos processos democráticos é o principal caminho para a construção de uma saída para a crise venezuelana.

Enquanto isso, Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente de maneira ilegítima, objetiva deslegitimar o processo eleitoral em curso no país. A sua estratégia está desmoronando. Com a eleição de uma nova Assembleia Nacional, neste 6 de dezembro, ele perderá definitivamente seu mandato de deputado. Portanto, a narrativa de “Guaidó presidente da Venezuela” que é uma farsa político-jurídica apoiada pelos Estados Unidos, Grupo de Lima e parte da União Europeia, cairá por terra. Afinal, sem Guaidó, qual será o próximo presidente da Venezuela escolhido por Washington?

É preciso compreender o que está em jogo com as eleições do próximo 6 de dezembro. Internamente, o pleito permitirá a recondução da oposição do país pelos trilhos da democracia, do diálogo e contra a ingerência externa. Isolar e derrotar a extrema direita liderada por Guaidó é objetivo tanto governo, como da oposição democrática.

Do ponto de vista externo, a batalha dos venezuelanos é garantir que este processo eleitoral seja respeitado internacionalmente. A história recente nos mostra que o imperialismo utiliza diferentes mecanismos para desestabilizar a vida política na Venezuela.

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As eleições de 6 de dezembro é mais um momento do exercício da democracia e da soberania venezuelana. Desde já, o imperialismo está trabalhando para boicotar as eleições, mas não conseguirá. Assim como o povo nas eleições da Bolívia, no plebiscito do Chile e nas eleições dos Estados Unidos, nessas eleições o povo venezuelano irá às urnas e poderá derrotar o entreguismo da extrema-direita liderado por Guaidó e dirigido pelo imperialismo.

Nossa tarefa é estar ao lado do povo da Venezuela, por meio do apoio público ao processo eleitoral e da denúncia da tentativa de mudança de regime empreendida desde a Casa Branca. Estima-se que só entre 2017 e 2018, mais de 40 mil venezuelanos morreram em função das sanções unilaterais dos Estados Unidos, segundo o Center for Economic and Policy Research (CEPR).

A defesa da soberania venezuelana é, também, a defesa da vida e da dignidade humana. Assim, é central reivindicarmos o respeito internacional ao resultado eleitoral neste 6 de dezembro, demonstrando nossa solidariedade irrestrita e nosso compromisso com o direito à autodeterminação dos povos.

É neste espírito que os movimentos populares do Brasil e do mundo estão mobilizados na defesa ao respeito internacional ao processo eleitoral venezuelano, por meio da Jornada Anti-imperialista em Apoio às Eleições Venezuelanas, que ocorrerá entre 1 e 8 de dezembro, com organizações e partidos políticos anti-imperialistas de todos os continentes defendendo o direito do povo venezuelano decidir seu próprio destino.

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**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Fernandes