Agronegócio

JBS mantém trabalhadores expostos ao risco de intoxicação por amônia; relembre casos

Composto tóxico é usado em sistemas de refrigeração devido ao baixo preço; JBS lucrou R$ 3 bi no último trimestre

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) |

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Desde 2014, onze vazamentos de amônia em frigoríficos da JBS foram noticiados na imprensa brasileira - MPT-RS/Divulgação

O vazamento de amônia em um frigorífico da JBS em Passos (MG), no dia 3 de novembro, teve como agravante inédito ocorrer em plena pandemia. Todas as demais informações veiculadas sobre o episódio parecem notícia velha: desde 2014, vieram à tona pelo menos dez casos semelhantes, com 316 trabalhadores atingidos, e a companhia se mostra incapaz de prevenir novos incidentes.

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O número foi obtido pelo Brasil de Fato a partir de levantamento na imprensa. Foram considerados apenas os casos em que trabalhadores precisaram ser atendidos com sintomas de intoxicação. A reportagem aguarda retorno do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para a confirmação oficial do número de acidentes com essa característica nos frigoríficos da JBS.

Fernando Alves Leite, perito em Engenharia de Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), diz que os episódios que chegam ao noticiário são apenas a ponta de um iceberg. “Em praticamente todas as plantas em que eu já estive [de todas as empresas, não apenas da JBS], há relatos, provas documentais ou investigação de acidentes com amônia”.

“O sistema de refrigeração que utiliza o fluido refrigerante amônia é o mais barato para fins de eficiência energética que existe no mercado”, acrescenta o perito. “Só que tem a toxicidade do agente químico. Ele é agressivo à saúde e pode levar até à morte por asfixia, como já tivemos em algumas plantas”, pontua Leite.

Os sintomas mais comuns de intoxicação por amônia são dificuldades respiratórias, queimaduras na mucosa nasal, faringe e laringe, dor no peito, edemas pulmonares, náusea, vômitos e inchaço na boca. Em geral, os vazamentos ocorrem por problemas de manutenção.

Dona das marcas Friboi e Seara, a JBS é a maior empresa de proteína animal do mundo. No terceiro trimestre de 2020, a companhia reportou o maior faturamento trimestral da história: R$ 3,1 bilhões, quase nove vezes o registrado no mesmo período do ano passado.

As Normas Regulamentadoras (NR) 13 e 36 reúnem uma série de obrigações para a segurança do trabalho nos frigoríficos. A última trata especificamente do uso da amônia, mas é descumprida em várias unidades, segundo o perito.

“Eu não conheci nenhuma planta em que a manutenção é tão boa que garanta que não vai haver vazamento de amônia. Na sala de máquinas, onde o pessoal está mais preparado, ocorre quase que diariamente”, relata Leite. “O que define é: a planta está preparada para controlar o vazamento sem consequências graves? Então, é preciso aprimorar o controle e a eliminação”.

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“Temos vários exemplos de casos de vazamento na casa de máquinas, às vezes a 100, 150, 200 metros de distância, mas precisa evacuar o frigorífico inteiro. Já peguei casos em que foi preciso evacuar a 800 metros, e ainda se sentia odor de amônia”, completa o perito.

Casos reportados na mídia

Oito dos onze casos levantados ocorreram no Centro-Oeste, nos municípios de Alta Floresta (MT), Senador Canedo (GO), Campo Grande (MS), Ponta Porã (MS), Confresa (MT), Araputanga (MT), Pontes de Lacerda (MT) e Sidrolândia (MS).

Fora da região, o mais grave foi registrado em Santo Inácio (PR), com 66 trabalhadores atingidos. Os demais ocorreram em Forquilhinha (SC) e Passos (MG).

Sobre este último, o mais recente da lista, com ao menos dois trabalhadores afetados, o Sindicato Profissional de Trabalhadores da Indústria de Alimentos em Passos aguarda até a próxima semana esclarecimentos da JBS. Segundo o advogado do sindicato, Paulo Correia, integrantes da empresa adiantaram informalmente que não há mais pacientes internados em razão daquele episódio.

Todos os casos mencionados acima foram registrados após a publicação da NR 36, de 2013.

A JBS sofreu diferentes sanções por conta dos problemas de segurança nos frigoríficos. Em fevereiro de 2017, a empresa foi multada em R$ 3 milhões pelo descumprimento de decisão judicial que determinou a adoção de medidas na unidade de Alta Floresta (MT). Entre as irregularidades registradas na planta, foram mencionadas a ausência de alarmes para detectar vazamento de produtos químicos e a obstrução de saídas de emergência.

Dois meses depois, a Polícia Militar Ambiental (PMA) aplicou uma multa de R$ 1 milhão à JBS em decorrência de falhas técnicas que causaram vazamento de amônia em uma unidade em Campo Grande (MS).

Após o acidente, o Corpo de Bombeiros constatou que a bomba por onde passava a amônia “estava em péssimas condições de conservação.”

O MPT também propôs vários Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) nos últimos anos. Um deles, em Trindade do Sul (RS), indicou que a planta da JBS não possuía um sistema eficaz de controle e detecção precoce de vazamento de amônia.


Alvo da operação Lava Jato, Joesley Batista foi um dos responsáveis pela expansão e internacionalização da JBS / Divulgação

Resposta da empresa

A JBS informou ao Brasil de Fato, por meio de nota, que “não houve óbitos entre os colaboradores ou consequências graves motivadas por vazamento de amônia em suas unidades industriais nos últimos anos”.

“Em todos os incidentes registrados, as unidades foram imediatamente evacuadas, com apoio das equipes de segurança do trabalho da Companhia, seguindo todos os procedimentos da NR 36, da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia. Todas as unidades industriais voltaram a operar normalmente após vistorias das equipes do Corpo de Bombeiros de cada região”, finaliza o texto.

A companhia não informou os números de vazamentos de amônia e de trabalhadores atingidos desde 2014, solicitados pela reportagem. Questionamentos do Brasil de Fato sobre as ações e a dificuldade da JBS para prevenir acidentes dessa natureza, apesar das multas e das ações do MPT, também foram ignorados.

Embora a JBS afirme que não houve “consequências graves” em suas unidades industriais nos últimos anos, lesões em trabalhadores do setor de abate em decorrência do vazamento de gases tóxicos vêm sendo reportadas ao INSS.

Em 20 de setembro de 2019, por exemplo, o banco de dados de Comunicação de Acidentes de Trabalho (CAT) registra 15 trabalhadores com lesões no aparelho respiratório – uma delas com lesões múltiplas – e outra com sintomas de envenenamento em Sidrolândia (MS). No mesmo dia e no mesmo município, a imprensa noticiou a evacuação de uma unidade da JBS por vazamento de amônia.

Causas e alternativas

Por se tratar de uma atividade essencial, a maior parte dos frigoríficos manteve o ritmo de trabalho durante a pandemia. O resultado foram surtos de covid-19 dentro das unidades, que ocorreram paralelamente aos acidentes de trabalho.

“Na pandemia, a JBS distribuiu máscaras, respiradores e ambulâncias para as prefeituras em volta. Então, se constrói uma imagem pública positiva, mas os trabalhadores lá dentro estavam e estão em risco”, critica José Modelski Júnior, Secretário-Geral da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação (Contac).

Para o dirigente, os vazamentos de amônia refletem problemas de manutenção e detecção, mas também uma visão empresarial que prioriza o lucro em detrimento da segurança dos trabalhadores.

“Um dos problemas, quando ocorrem os acidentes, é a demora em evacuar. Eles não querem que a fábrica pare, então, muitas vezes, mesmo com vazamento, seguram o pessoal trabalhando”, relata Modelski.

O perito Fernando Alves Leite concorda que há “muito amadorismo” no setor. Ele observa que as maiores empresas têm investimento superior em eficiência e produtividade, mas não necessariamente em segurança. “Já peguei até frigorífico grande com porta de emergência trancada, na frente da esteira de produção”, relata, sem mencionar o nome da empresa.

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Existem alternativas para o problema, segundo o especialista, mas o custo é superior ao da amônia.

“Há outros fluidos refrigerantes, menos agressivos ou não agressivos à saúde, só que alguns deles não conseguem atingir uma temperatura necessária em parte do processo produtivo”, afirma Leite. “Uma alternativa é substituir por propileno glicol, não agressivo à saúde, ao menos nos ambientes com densidade populacional elevada”.

A Contac acompanha algumas das ações do Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho nos Frigoríficos, do MPT, e defende a substituição gradativa da amônia.

“Fazemos pressão de vários lados, mas deveria haver uma legislação que exija isso ao longo do tempo ou que proíba a utilização, como no caso do amianto, por ser uma questão de saúde pública”, sugere Modelski.

A reportagem entrou em contato com a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) para contrapor as acusações e checar dados de vazamentos, mas não obteve retorno.

Edição: Rogério Jordão