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Café Sabelucha de Segismundo Bruno: um lugar de resistência, política, amor e memória

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Atrás dos balcões estava Segismundo Bruno, com um enorme sorriso aberto, conversando com todos que frequentavam seu estabelecimento. Era o “Café do Bruno” - Reprodução
No último dia 18 o Bruno faleceu e essa coluna é uma homenagem a ele, ao seu legado e à sua luta

Na rua 13 de maio, número 580, no coração do Bixiga, fica uma casa centenária pintada de bege e vermelho – que já foi azul e de várias outras cores... Tem uma entrada lateral, provavelmente por onde passavam os coches, com seus cavalos, no começo do século XX. Grandes janelas e uma porta-balcão ladeavam uma placa antiga com os dizeres: “Sabelucha: café e doceria”. Quem passava por lá via bandeiras do PT, pôsters de campanhas políticas, estátuas de líderes políticos, camisetas e muitos livros de política, filosofia, ensaios de análise de conjuntura, de sociologia e jornalismo.

O café nunca estava vazio. Atrás dos balcões estava Segismundo Bruno, com um enorme sorriso aberto, conversando com todos que frequentavam seu estabelecimento. Era o “Café do Bruno”. No dia 18 de novembro, o Bruno faleceu e essa coluna é uma homenagem a ele, ao seu legado e à sua luta e resistência a frente do café.

Um café nunca é apenas um café. Um café traz consigo uma história de séculos. Na época Moderna, mais especificamente no século XVIII, um novo tipo de estabelecimento surge em Paris. Era um lugar que servia uma nova bebida, encontrada na Etiópia, e que se espalhava a partir do mundo árabe pela Europa. O café tinha propriedades especiais nunca antes vistas, ou melhor, nunca antes sentidas pelos homens. A bebida deixava os homens e mulheres mais atentos, sóbrios, sem dormirem, vigilantes.

Quando chegou à corte de Luis XIV, na década de 1680, o café logo tornou-se uma moda entre os cortesãos elegantes. Para sorvê-lo necessitava-se de pequenas xícaras, e ele animava conversas. Em pouco tempo as importações cresceram e nasceu na cidade um lugar com características singulares, o Café Procope, perto da Comédie Française, que tinha acabado de abrir as portas.

O lugar transformou-se num ponto de encontro de artistas e intelectuais, ansiosos por provar a novidade que encantava a cidade. Em um século, os cafés se tornaram lugares de discussão política, encontros de filósofos, transgressões e rebeliões. Cheios de pessoas interessantes, viraram, para o poder, “lugares perigosos”.

O café do Bruno no Bixiga era exatamente esse tipo de lugar. Todas as vezes em que eu entrava no estabelecimento para tomar um café (o que era quase todos os dias), lá estava o Bruno discutindo apaixonadamente política com alguém. Falava com interesse, argumentava, ouvia atentamente o interlocutor, não importasse quem fosse e as barbaridades que proferisse, e respondia, generosamente.

Ele discutia com policiais, vizinhos, amigos e clientes, ou mesmo quem chegasse ali apenas para provocá-lo, por conta dos materiais de esquerda que exibia corajosamente. Os assuntos preferidos eram democracia, direitos humanos, cuidado com outras pessoas. Sua postura aberta, como nos antigos cafés, era perigosa, e foram várias os ataques a sua pessoa e ao café. Mas o Bruno resistia.

Quando os piores dias vieram, com o golpe da Dilma em 2016, tomar café no Bruno era um ritual de cura e cuidado. Precisava me curar do ódio destilado na imprensa, pelos vizinhos e pela família; precisava cuidar de quem pensava como eu, cuidar das sementes dos que ficaram na resistência. Ele cuidava de nós e nós cuidávamos dele.

Não foram poucas os fins de tarde, começos de noite, em que fomos, junto com o Adriano Diogo, tomar um último café no Bruno, antes de ele fechar. Eram como irmãos, o Adriano e Bruno. Quando o Adriano me ligava e dizia “vem tomar um café”, eu já sabia onde e com quem... subia a rua com o coração cheio de alegria e esperança de rever os amigos.

Eles estavam também nesse processo, de cura, de semente, de ressemear e florescer. Ficamos agora aqui, um pouco perdidos, sem o Bruno de todos os dias e de todos os cafés, mas sabendo que ele nos queria fortes, animados, discutindo política e, principalmente, semeando a resistência.

Edição: Rogério Jordão