As mulheres estiveram na cozinha, alimentando as famílias desde tempos imemoriais
Um fantasma ronda as cozinhas do mundo todo: a presença das mulheres. Ainda hoje mulheres que trabalham em cozinhas profissionais são vistas com desconfiança. Mulheres que ganham estrelas Michelin, o guia francês mais conhecido de classificação de restaurantes, também são raridades (ainda que pouco a pouco isso esteja mudando). Os casos de assédio, sexual e de trabalho, são corriqueiros nas cozinhas de bares e restaurantes profissionais ao redor do mundo, ainda que pouco se fale sobre isso. Por incrível que pareça, falar sobre assédio das mulheres nas cozinhas profissionais ainda é um tabu, visto como um assunto proibido e de mal gosto. Mas essa é a realidade na maioria desses espaços.
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A história das mulheres nas cozinhas profissionais começa com a disseminação dos restaurantes na França do final do século XVIII. Com a crescente popularização desse tipo de estabelecimento, ao longo do século XIX, uma questão começa a se colocar: se as mulheres estavam à frente das cozinhas caseiras, por que não poderiam encabeçar estabelecimentos comerciais? Nas cozinhas reais, os cozinheiros geralmente eram homens, encarregados de servir um batalhão que vivia nas cortes. Nas batalhas, existiam frentes de cozinheiros destinados a fazer as refeições dos soldados.
As cozinhas, da corte ou dos campos de batalha, eram lugares inóspitos, pra dizer o mínimo, que demandavam enorme força física e saúde. Essa necessidade de esforço físico foi uma das justificativas para afastar as mulheres das cozinhas de restaurantes no século XIX. Até hoje, é comum pedir para mulheres que estão iniciando o trabalho em cozinhas profissionais que busquem as panelas mais pesadas, carregadas de água. É uma espécie de teste de resistência.
As mulheres estiveram na cozinha, alimentando as famílias desde tempos imemoriais. Era responsabilidade da mulher, na cultura ocidental, alimentar, cuidar e manter limpa a casa, no que hoje é chamado de trabalho não remunerado ou trabalho invisível das mulheres, esse eterno cuidado com a casa e a família. Quando os restaurantes se disseminaram no século XIX, elas continuaram presas às cozinhas domésticas com nenhuma remuneração (a maioria) ou baixíssimos salários como as cozinheiras de famílias ou empregadas domésticas. Muitas cozinheiras de família possuíam um dom ou uma habilidade culinária tão desenvolvida quanto a dos chefs dos mais renomados dos restaurantes de Paris. O que teria acontecido, então?
O desenvolvimento dos restaurantes trouxe problemas trabalhistas para seus funcionários, como aconteceu com toda a categoria profissional na França e na Inglaterra após revolução Industrial. Os trabalhadores de restaurantes, garçons e cozinheiros, se uniram em sindicatos para defender seus próprios interesses. Ganharam uma série de proteções trabalhistas ao longo do tempo, como a necessidade de profissionalização em escolas de gastronomia, tempos de trabalho, salários que se modificavam conforme a hierarquia da cozinha.
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Mas uma das principais reivindicações foi a diferenciação do trabalho masculino e feminino na cozinha. Aos homens ficou reservado o trabalho profissional dentro de estabelecimentos como os restaurantes, com uma estrutura regulamentada por leis, e as mulheres ficaram com as cozinhas de família, com aprendizado informal e não letrado e uma remuneração associada aos serviços domésticos. Temos alguns exemplos de grandes cozinheiras domésticas na literatura inspiradas por figuras reais, como François e, a cozinheira descrita por Marcel Proust em Em Busca do Tempo Perdido. Segundo os sindicatos da área durante o século XIX, as mulheres não poderiam se filiar, tampouco frequentar escolas de gastronomia.
O sistema francês se espalhou pelo mundo com a disseminação dos restaurantes. Hoje, vive-se num legado desse tempo dentro dos restaurantes. Assédio, discriminação, preconceito são comuns em grandes estabelecimentos. São poucas as mulheres a conseguirem o cargo de chef, e geralmente sua atuação fica restrita à confeitaria. Gritos, manobras sutis, piadas machistas são comuns. Mesmo com um intensivo treinamento profissional, muitas mulheres desistem de trabalhar em restaurantes e tomam carreiras paralelas na gastronomia – criando buffets ou sistemas de entrega, fazendo festas particulares, ou até mesmo escrevendo sobre comida.
Um reflexo dessa atitude perante as mulheres na cozinha pode ser visto nos programas de reality show dos dias de hoje, em que muitas vezes vê-se risinhos, piadas ou desprezo por mulheres que estão cozinhando. As coisas estão mudando lentamente, mas ainda falta muito para que a cozinha profissional de restaurante seja uma profissão aberta às mulheres. Escrever sobre isso é também uma forma de abrir caminhos e expor a absurda discriminação contra a qual os trabalhadores homens da área, por “tradição”, compactuam.
Edição: Rogério Jordão