Os interesses da indústria farmacêutica e dos países ricos determinarão quando e a quem uma provável vacina contra a covid-19 chegará, segundo pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato.
Apesar de esforços da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que a distribuição seja geoeconomicamente igualitária, é provável que o dinheiro divida ricos imunizados de pobres suscetíveis ao vírus por algum tempo.
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O Brasil está entre países com boa condição ao privilégio de receber as primeiras levas da vacina, quando ela estiver registra. A distribuição nacional, no entanto, também tende a ser desigual entre estados ricos e pobres.
“Se não houver uma coordenação, uma estratégia, de compra e distribuição a nível nacional, vai haver uma desigualdade muito grande entre os estados que podem pagar e os que não podem pagar”, afirma a médica epidemiologista e pesquisadora Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, nos Estados Unidos.
O governo brasileiro fechou dois acordos até agora: um com o conglomerado anglo-sueco AstraZeneca, parceiro da Universidade de Oxford, e outro com o Instrumento de Acesso Global de Vacinas Covid-19 (Covax Facility), uma coalizão de mais de 150 países que visa acelerar o desenvolvimento, a produção e o acesso equitativo e igualitário aos testes, tratamentos e vacinas.
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Com a adesão ao Covax, o país vai investir cerca de R$ 2,5 bilhões para adquirir um portfólio de, até então, nove vacinas em desenvolvimento, na intenção de garantir a proteção a 20% da população, inicialmente.
Os contratos, no entanto, não garantem que o país não seja atropelado por países mais ricos, como aconteceu na pandemia de H1N1, em 2009, quando Estados Unidos e China concentraram as compras e deixaram as outras nações desassistidas. “Você pode se cercar por todos os lados, mas não há uma garantia”, diz Garrett. O governo de Donald Trump, por exemplo, não aceitou entrar no Covax.
A pesquisadora brasileira afirma que coalizões com a divisão de investimento entre empresas, estados e fundações, são a melhor alternativa para garantir acesso igualitário à vacina. Segundo ela, o modelo é inédito e deveria ter sido adotado muito antes.
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“Uma das coisas que poderiam ficar dessa pandemia é a formação dessas parcerias público-privadas, que desempenham um papel, como modelo de pesquisa, que seria um modelo que iria permitir uma distribuição justa, com maior pesquisa e acesso maior”, defende.
Controle da pandemia
é possível que algumas empresas digam: não, quem define o fim da pandemia sou eu
Baseada em interesses próprios, a indústria tem poder até de determinar o fim ou não da pandemia, afirma o médico sanitarista e pesquisador Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
“Quem define quando acaba a pandemia? Na minha opinião, quem tem que definir quando a pandemia vai acabar é quem instituiu a pandemia, isso é, a Organização Mundial da Saúde. Mas é possível que algumas empresas digam: não, quem define o fim da pandemia sou eu”, sugere o pesquisador.
Outra vez, o que está em jogo é o lucro. “A vontade deles não é controlar a pandemia. É decretar que a pandemia acabou para eles botarem o preço que quiserem”, explica Guimarães. “Esse preço da vacina é um preço que está sendo estabelecido no âmbito da pandemia. Evidentemente, quando acabar a pandemia, as empresas vão querer botar outro preço”, complementa.
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Para que se garanta a imunização de boa parte do povo, o vice-presidente da Abrasco só vê um caminho: a incorporação da vacina, quando pronta, ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Sistema Único de Saúde (SUS).
“No meu ponto de vista, todas as vacinas que forem aprovadas têm que ser incorporadas ao Sistema Único de Saúde. O que significa que uma vacina que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) registre pode ser comercializada no país, mas tem um passo seguinte: ela tem de ser incorporada no Sistema Único de Saúde, o que não é a Anvisa que faz. Quem faz é uma comissão chamada Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias, o Conitec”, explica o médico.
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A precificação das doses por parte da indústria, porém, pode ser entrave para a distribuição pública. “Você pode ter uma vacina que seja registrada pela Anvisa, mas ela vai custar US$ 100 a dose. Estou dando um exemplo extremado. Nessa circunstância, é muito difícil que ela venha a ser incorporada no Sistema Único de Saúde, porque o custo efetividade dela não vai compensar, não haverá dinheiro”, diz Reinaldo.
A princípio, em razão do cenário urgente, especialistas preveem que a dose deva custar em torno de US$ 5, o que caberia no orçamento brasileiro.
Quebra de patentes
A indústria mantém propriedade intelectual sobre as vacinas, as chamadas patentes. É um direito dela que, em alguns casos, pode se sobrepor ao direito constitucional de acesso à saúde.
Como consequência, as patentes dão às empresas autonomia no controle do preço, o que pode restringir o acesso aos cidadãos, conforme pesquisadores da área de direito.
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A cientista Sandra Regina Martini, pós-doutora em Direito e também em Políticas Públicas, defende que as patentes sejam quebradas — ou seja, que não haja direito à exclusividade — para que a especulação comercial não se sobreponha à universalização do acesso. Ela é coautora de um estudo sobre o tema.
nós estamos fazendo uma diferenciação entre quem nós queremos salvar e quem nós queremos matar
“Se a saúde é um direito universal, se a saúde é um bem para a comunidade, não está em discussão restringir o acesso à vacina. A vacina tem que ser de acesso universal. Vamos quebrar patentes. Nós já fizemos isso mais uma vez [em 2007, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou a suspensão da licença ao Efavirenz, remédio para o tratamento da aids]”, afirma a especialista.
A pós-doutora lamenta que exista uma guerra comercial em um momento pandêmico tão delicado. “É privatizar os corpos das pessoas. Na medida em que a vacina tem um custo elevado e alguns podem pagar e outros não, nós estamos fazendo uma diferenciação entre quem nós queremos salvar e quem nós queremos matar”.
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O advogado e pesquisador Theodoro Luís Mallmann de Oliveira, que assina o estudo com Sandra Martini, diz que é importante que o direito à propriedade seja respeitado em situações comuns, mas reforça que, em casos extremos, como agora, é preciso repensá-lo.
“Tem que haver uma compatibilização do direito à propriedade com as políticas públicas, tanto nacionais como internacionais. Temos, por exemplo, a Organização das Nações Unidas, que pode criar mecanismos para estimular a Organização Mundial do Comércio a tornar esses preços mais acessíveis”, diz.
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Ele lamenta que a saúde esteja, muitas vezes, abaixo do lucro. “Infelizmente, muitas vezes o dinheiro fala mais alto, o capital”, afirma o pesquisador. “Enquanto o dinheiro e as diferenças políticas e ideológicas, culturais, religiosas, falarem mais alto, todos vão sair perdendo”, constata.
Edição: Lucas Weber