Os chilenos aprovaram, no plebiscito do último domingo (25), a escrita de uma nova constituição para o país, com 5,8 milhões de votos, o que representa 78,2% do total. Com isso, o Chile abandonará a Carta Magna vigente, promulgada em 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet. No entanto, esse é só o início de um processo que deve culminar em 2022 com mais uma consulta popular para provação do novo texto.
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No dia 11 de abril de 2021 deverão ser eleitos 155 constituintes, metade homens e metade mulheres, que deverão escrever a nova carta magna. A eleição será regida pelo atual código eleitoral do país, que prevê um cálculo de proporcionalidade de acordo com a região e votação de cada candidato. Esta é primeira vez na história que um organismo com equidade de gênero escreverá uma constituição.
Os constituintes terão um prazo de um ano para apresentar uma proposta. Dentro da chamada Convenção Constituinte, as normas que serão incluídas no novo documento constitucional devem ter apoio de dois terços dos participantes, equivalente a 103 representantes.
Para ser candidato a deputado constituinte é preciso ser cidadão chileno, ter ao menos 18 anos, não ter sido condenada a uma pena superior a três anos de detenção e não exercer nenhum cargo público no Executivo ou Legislativo do país.
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As candidaturas independentes devem ser de pessoas que não pertencem a nenhuma organização política por pelo menos nove meses antes da eleição. Já as candidaturas partidárias devem ser de pessoas filiadas aos partidos há pelo menos dois meses.
Mesmo antes de iniciar o período de campanha, na segunda-feira (27), prefeitos de partidos de oposição assinaram o acordo Unidas e unidos à constituinte para promover a participação cidadã no processo.
Os limites da Convenção
O sociólogo Esteban Silva defende que, antes de fazer campanha para eleger constituintes, os chilenos ainda precisam pressionar as classes políticas para aumentar o poder da Convenção Constituinte e oferecer garantias para a presença de setores sociais, que não estão associados a nenhum partido legal, mas que se organizam em movimentos de base, territoriais, estudantis ou sindicais.
"Estamos em um momento de crise que é constituinte e de decomposição no sentindo político mais profundo. Essa é uma batalha que apenas começou. Primeiro temos que lutar para que a Convenção Constituinte se transforme em uma assembleia constituinte originária de fato e isso não está assegurado", analisa Silva.
"O que está previsto é somente o propósito de escrever a nova constituição, mas não há nenhum poder soberano estabelecido à Convenção. Os tratados assinados pelo governo chileno, por exemplo, permanecem intocados. São tratados que reproduzem a institucionalidade capitalista neoliberal", questiona.
Crise de representatividade
De acordo com o analista, o sistema político chileno atravessa uma crise de representatividade, que atinge organizações de direita e de esquerda.
O mapa da votação de domingo explicita as diferenças de classe entre os setores que votaram "sim" e "não" à reforma. As zonas mais ricas do país preferiam manter a lei como está, já nas regiões periféricas o voto massivo foi a favor da mudança.
O referendo teve um recorde de participação, cerca de 50% do eleitorado compareceu às urnas, quando nas últimas eleições o índice variava entre 30 e 40%. A maior queda da votação foi entre adultos e idosos. Enquanto os jovens, a partir de 18 anos, deram peso à participação.
A proposta de plebiscito foi fruto de um acordo entre partidos de centro-esquerda e o governo de Sebastián Piñera (Renovação Nacional), como uma resposta às manifestações que tomaram conta do país desde 18 de outubro de 2019.
Para Silva, o resultado da votação e as mobilizações que se fortaleceram no último ano são uma evidência de que os setores não representados pelos partidos políticos tradicionais são a maioria e aqueles que devem assumir a direção do processo constituinte.
"Temos uma democracia representativa que está em crise, que não assegura uma democracia participativa. A mobilização permanente é a única coisa que pode garantir que a institucionalidade volte a abrir brechas que permitam avançar para que Convenção Constituinte se transforme em uma assembleia constituinte, que tenha poderes para constituir uma nova soberania", defende.
Povos originários
Outro aspecto em debate é sobre como se dará representação indígena no processo. Um setor defende que seja realizada uma constituinte entre os povos originários, enquanto outro defende uma cota entre os deputados da convenção já aprovada. Essa proposta está há dois meses tramitando no Senado, sem um resolução.
"Chile tem um assunto pendente que é assumir a qualidade e condição de Estado plurinacional. O Estado chileno e suas classes dominantes negaram de maneira sistemática a existência e os direitos da nação Mapuche e dos outros povos originários", afirma o sociólogo, mencionando o exemplo do modelo adotado pela Bolívia.
Cerca de 12,7% da população chilena é indígena. No entanto, o Estado não reconhece a existência de povos indígenas como nacionalidades distintas. Dessa forma, estas comunidades estão impedidas de ter reconhecidos na atual Constituição seus próprios sistemas jurídico, representativo, eleitoral, entre outros.
Além da falta de reconhecimento na lei, o governo também reprime os povos originários. Existem cerca de 20 presos políticos Mapuche nas cárceres chilenas. As principais zonas habitadas pelos povos Mapuche, o chamado Wallmapu, ao sul do território, e Aymara, ao norte, também estão militarizadas pelos carabineros — polícia militar chilena.
Unidade popular
Especialistas analisam que a esquerda chilena está muito fragmentada. A situação seria um reflexo da repressão sofrida nos anos de ditadura militar (1973 - 1990) e das divisões geradas durante os governos da "Concertação" (1990 - 2004), que realizaram algumas reformas, mas mantiveram praticamente intacta a estrutura de Estado criada durante o regime de Augusto Pinochet.
Uma estrutura com educação, saúde, transporte e previdência privados, com a mineração e a pesca — motores da economia chilena — controlados por multinacionais.
Só alcançaremos com luta, com o povo mobilizado
"Temos que desarmar, desconstruir, através da mobilização, da organização, debate, propostas, da reestruturação, um Estado tomado pelas oligarquias que permitiu a reprodução de um modelo ultraneoliberal que desnacionalizou a soberania econômica", defende Esteban Silva.
Para o sociólogo, o processo iniciado com as manifestações de outubro de 2019, que avançou com o plebiscito e agora caminha para uma nova constituição pode representar a refundação do Chile, algo que foi interrompido com o golpe de Estado, em 1973, contra o presidente Salvador Allende, eleito pela coalizão Unidade Popular.
"Só alcançaremos com luta, com o povo mobilizado, com uma batalha ideológica gigantesca, com a possibilidade de reconstituir as forças populares de maneira coletiva, com propostas concretas e só alcançaremos com poder popular. Sem poder popular tudo é efêmero, pode ser derrubado ou entrar em crise. Creio que isso foi o que aprendemos nesse período tão rico, tão dinâmico, tão duro, mas que demonstrou nossa vontade de abrir alamedas, no sentido que propunha Salvador Allende há 50 anos", finaliza.
Edição: Rodrigo Chagas e Marina Duarte de Souza