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Por que 80% dos chilenos querem uma nova Constituição?

Constituição herdada da ditadura exclui responsabilidade do Estado nas áreas de saúde, educação e seguridade social

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Vitória popular no plebiscito desse 25 de outubro no Chile precisará de mobilização para consolidar uma democracia social - Emergentes

Durante os protestos de 2019 que levaram ao plebiscito realizado nesse domingo (25) no Chile, uma das principais palavras de ordem dos manifestantes era: “não são 30 pesos, são 30 anos”. A frase sintetiza uma das principais demandas da população chilena: uma nova Constituição que garanta os seus direitos sociais. Mas o que isso significa?

O Brasil de Fato conversou, na tarde desta segunda-feira (26), com Joana Salém, professora e doutoranda em Histórica Econômica (USP) e Cecília Brancher, analista internacional e pesquisadora, para compreender por que mais de 5 milhões de chilenos votaram por uma nova Carta Magna, em substituição à vigente, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Principal herança da ditadura: um neoliberalismo radical

A Constituição derrotada no plebiscito instaurou no Chile um modelo neoliberalismo considerado “exemplar”. A Carta Magna de 1980, redigida pelo colaborador de assuntos jurídicos de Pinochet, Jaime Guzmán, deixava de fora as garantias sociais da maioria da população chilena, por não incluir em seu texto o acesso universal e gratuito à educação, saúde, seguridade social, entre outros. 

Apesar do plebiscito de 1988 ter derrotado o regime ditatorial de Pinochet, com eleições e voto popular em 1990, não houve uma alteração da Constituição chilena nem a revogação das leis orgânicas da ditadura.

Segundo Joana Salém, com modelo imposto na Constituição de 1980, o Estado chileno passou a ter como função principal garantir o funcionamento dos negócios, isto é, proteger a propriedade privada e o mercado financeiro em detrimento dos direitos básicos da população. 

Desta forma, o país viveu nos últimos anos um crescente endividamento de seus cidadãos – como o endividamento dos estudantes, dos idosos e da classe trabalhadora em geral que, por quase três décadas, têm pago um alto preço para ter acesso às universidades, à saúde e à aposentadoria.

No Chile, a aposentadoria é administrada pelas AFPs [Administradoras de Fundos de Pensão], com fundos que são investidos em aplicações financeiras. As primeiras gerações chilenas a se aposentar pelo sistema se depararam com o valor de aposentadoria abaixo do salário mínimo.

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As políticas neoliberais implementadas no país, onde até as águas são privatizadas, geraram uma desigualdade histórica profunda no período democrático. Por sua vez, a insatisfação da população chilena levou a uma resposta nas ruas ao longo do último ano e se expressou também nos votos do último domingo.

Joana Salém observa como houve uma diferença expressiva de votos nos bairros e regiões mais ricas do Chile. Em Santiago, por exemplo, nos bairros de luxo, como Lo Barnechea, venceu o rechaço a uma nova Constituição, enquanto nos bairros e regiões mais pobres, a aprovação venceu com ampla maioria. Já nos bairros de classe média, a aprovação de um processo constituinte venceu, mas com menos expressão do que nos bairros populares.


Mapa da votação do plebiscito de 25 de outubro em Santiago, capital do Chile, mostra que o rechaço à nova Constituição se concentrou nos bairros mais ricos / Divulgação

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Repressão

Além do abandono das políticas públicas, a repressão militar é outra das características herdadas da ditadura chilena que se perpetuou no período democrático.

Na avaliação de Joana Salém, a repressão protagonizada pelos Carabineros, como é conhecida a polícia militar chilena, desde os protestos do ano passado, com milhares de casos de violação de direitos humanos, também é um dos fatores que levou a população a rechaçar a Constituição vigente.

A violência militar recente deixou centenas de vítimas; cerca de 450 pessoas perderam total ou parcialmente a visão por disparos de balas de borracha e há cerca de 490 denúncias ao Ministério Público de vítimas de torturas, 112 delas por violência sexual.

Esta violenta atuação do Estado frente às manifestações populares, segundo a pesquisadora, assombrou tanto aqueles que viveram o período militar quanto os jovens que responderam nas ruas à violência, formando uma aliança intergeracional para que a repressão não ficasse sem resposta.

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Possibilidade de reformas estruturais

O processo constituinte para elaboração de uma nova Carta Magna chilena coloca a possibilidade de avanços mais profundos na estrutura da sociedade chilena, algo bloqueado pela Constituição pinochetista, definida pela analista internacional Cecília Brancher como “antinacional, antidemocrática e antipopular”, tanto pela sua origem quanto por seu conteúdo.

Ela destaca que embora a constituinte não seja um fim em si mesmo, o apoio popular à nova Constituição pode levar a importantes reformas estruturais, seguindo o exemplo da iniciativa de reformas de base empreendida pelo governo de Salvador Allende.

O governo de Allende, destituído no golpe de Estado que levou Pinochet ao poder com o apoio dos EUA, buscava empreender uma reforma agrária e urbana, educacional e sanitária.

Desafios

Enquanto os chilenos e chilenas comemoram, com entusiasmo e alegria, a vitória popular conquistada no último domingo, começam a ser debatidos também quais são os obstáculos e desafios para a criação de uma Constituição que priorize os interesses da maioria da população, isto é, dos quase 80% de chilenos que votaram por esta possibilidade.

Uma das dificuldades, segundo a pesquisadora Joana Salém, é a atual fragmentação partidária da esquerda chilena, com rupturas internas, somada à desconfiança política de diversos setores sociais sobre o atual sistema partidário.

Ela explica que para conquistar as bandeiras populares, será preciso conseguir maioria dentro da Convenção Constitucional, que será conformada por 155 membros eleitos em abril de 2021. 

Assim, um dos principais desafios será o enfrentamento da máquina eleitoral e midiática da direita e a criação de canais de representação popular, além de uma permanente mobilização popular para construir sus programas e pressionar os deputados para que sejam aprovados como artigos da nova Constituição.

Nas palavras da analista Cecília Brancher:

“A concretização [dessa vitória] depende da capacidade organizativa e nível de politização do debate no próximo período, porque processos são balizados pelas massas e sua capacidade organizativa, e é o que dirá o que vai acontecer”.

Principais bandeiras

No marco do processo constituinte, que se inicia agora após o plebiscito e ocorre até meados de 2022, a mobilização popular estará voltada principalmente para três bandeiras. 

A primeira delas, o fim do conceito de Estado subsidiário que rege a Constituição atual e a transição a uma democracia social, que garanta os direitos básicos da população de forma gratuita.

Uma das demandas será também a garantia de uma democracia participativa e direta, com a criação de conselhos e decisões através de plebiscitos. 

A terceira é a criação de um Estado plurinacional, na prática, com mecanismos de garantia da autonomia dos povos originários, como os povos mapuche, que historicamente luta pelo reconhecimento de seus territórios e de sua cultura, enfrentando a repressão militar e conflitos com o Estado até hoje.

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Contexto internacional

A vitória da aprovação de uma nova Constituição no Chile, segundo as analistas, representa uma derrota do projeto neoliberal que impera no país desde a ditadura, atravessando os 30 anos do período democrático.

Nesse sentido, a vitória chilena pode ser considerada um exemplo de resistência para os povos de países também vulnerabilizados pelas políticas de ajuste, como o Equador, que também se levantou contra as políticas impostas pelo FMI em outubro de 2019, e no Brasil, onde o presidente e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, são admiradores do “laboratório neoliberal” pinochetista.

Edição: Luiza Mançano