Marco temporal

Mesmo com terra reconhecida pelo STF, comunidade indígena de SP relata apreensão

Comunidade de Piaçaguera teme aprovação de marco temporal, que restringe o direito dos povos indígenas a suas terras

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Localizada no litoral de São Paulo, terra Indígena Piaçaguera teve homologação em maio de 2016, no governo Dilma, mas processo vinha sendo questionado no STF por proprietário de terra - Carlos Penteado

Após ter a homologação da Terra Indígena Piaçaguera, no litoral de São Paulo, mantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no último dia 2 de outubro, a comunidade da área lida agora com a expectativa que gira em torno do julgamento do chamado “marco temporal”, proposta defendida por ruralistas que visa limitar os territórios originários àqueles que estavam ocupados por povos indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data em que entrou em vigor a Constituição Federal.

Marcada inicialmente para a próxima quarta-feira (28), a avaliação da medida foi retirada da pauta do STF nesta sexta-feira (23), mas a indefinição da questão em si continua mobilizando os integrantes das 11 aldeias locais e gerando apreensão. 

É o que afirma, por exemplo, a professora Lilian Gomes Fernandes, para quem os moradores de Piaçaguera ainda não podem celebrar a homologação. “A gente ainda não consegue comemorar, não consegue ficar tranquilo, porque o que a gente vê na terra é pros nossos filhos e netos que estão vindo. A gente queria morrer tranquilo, comemorar de fato, de verdade”.  

O relato se repete no discurso de outras lideranças do território, como é o caso do cacique Awá Tenondegua, da aldeia Tapirema, que comemorou a validação do reconhecimento do território Piaçaguera, mas com a consciência de que a luta ainda não teve o seu fim. “Quando veio a notícia de que a homologação foi confirmada, a gente ficou bem tranquilo, bem aliviado, demos o nosso grito de guerra. Foi mais uma [batalha] vencida. Mas ainda não estamos seguros com essa decisão do marco temporal”.

O processo de demarcação do Território Indígena Piaçaguera teve seu fim em maio de 2016, mas, na sequência, enfrentou questionamentos vindos de um proprietário de terra da região que tentou reverter a homologação da área junto ao Supremo. Neste mês, após quatro anos de uma ansiosa batalha, o STF decidiu reconhecer a oficialização da terra. Em uma decisão unânime da Corte, os magistrados destacaram, entre outras coisas, a importância da relação mantida pelos povos tradicionais com suas terras.

É ao evocar essa relação que a cacica Itamirim, da aldeia Tabaçu Reko Ypy, projeta a possibilidade de um “futuro verde” a partir da garantia de posse da terra, caso o Supremo rechace a tese do marco temporal. Com uma área de cerca de 3 mil hectares, o território Piaçaguera está localizado na região da Mata Atlântica e abrange do litoral até o sertão, com uma extensa vegetação. A comunidade reúne cerca de 350 pessoas de aldeias que vêm do tronco tupi-guarani, família linguística que tem a maior distribuição geográfica do Brasil.


Com área de cerca de 3 mil hectares, território Piaçaguera fica na região da Mata Atlântica e abrange do litoral até o sertão, com extensa vegetação / Carlos Penteado

“É muito impressionante que os guaranis, em geral, tenham conseguido se manter vivos e atuantes até hoje. São 500 anos de resistência mesmo, e eu acho muito impressionante [o fato de] essas áreas, onde tem muito apelo chegando da cidade, ainda resistirem e quererem outro modo de vida, um modo que respeita o seu vínculo com a natureza”, realça a advogada Carol Bellinger, da Comissão Pró-Índio, que acompanha o status jurídico da comunidade Piaçaguera.

Na luta pela preservação do patrimônio, os indígenas locais lidam cotidianamente com o desafio de recuperar os trechos destruídos por mineradores de areia que atuaram na região por mais de cinco décadas. Ao mesmo tempo, se engajam na luta político-jurídica para pressionar o STF contra o marco temporal.   

“A gente sempre está envolvido em muitas lutas. O povo indígena nunca para. Passa uma liderança, vêm outras, mas sempre na função de lutar por melhorias e manter aquilo que já tem”, analisa o cacique Awá Tenondegua.

Para Itamirim, a mobilização coletiva é a forma de evitar que o Supremo negue o reconhecimento das terras historicamente ocupadas. “Porque, se isso acontecer, nós vamos ter um retrocesso muito grande. Vai ser um etnocídio”, qualifica.  

Ela acrescenta que os indígenas locais têm investido em uma articulação pelas redes sociais para tentar envolver outros atores na defesa das áreas tradicionais. “E também a gente tem a força da parte da espiritualidade, da ancestralidade juntamente a pessoas que não são indígenas, que estão conosco nessa energia positiva e acreditando que tudo vai dar certo porque nós somos fortes. Juntos, somo mais fortes”, afirma, ao apontar novamente para o “futuro verde”.  

Edição: Mauro Ramos