As inevitáveis reflexões sobre a vida pós-pandemia anunciam uma série de mudanças e adaptações em nível individual e coletivo. Não é difícil imaginar que, nesta nova realidade, as cidades brasileiras também serão afetadas – seja no que tange questões estruturais ou no dia a dia da mobilidade urbana.
Um estudo lançado em setembro pela plataforma A Vida no Centro, mapeou tendências que teriam sido geradas ou aceleradas pela pandemia, relacionadas com o cotidiano das cidades e de seus habitantes, assim como a relação comportamental dos moradores com suas casas.
Devido ao isolamento social, o aumento do home office e a adoção de modalidades como o home office híbrido, que mescla o trabalho presencial com o trabalho a distância, é um dos movimentos apontados pelo estudo.
Em função disso, a adaptação das moradias pela maior permanência em casa é uma tendência já identificada, assim como o desenvolvimento de outras atividades como exercício físico e afazeres manuais, principalmente relacionados à cozinha e a artesanatos.
O relatório afirma que descentralização do trabalho também impacta na dinâmica espacial da cidade, já que há maior liberdade de escolha sobre onde morar. Com parte das pessoas deixando de se deslocar diariamente nos horários de pico, há possibilidade de alívio do trânsito.
A metodologia do relatório de tendências utilizou informações respondidas por 1.521 pessoas em todo o Brasil e desk research, uma análise aprofundada sobre tudo o que já foi publicado sobre o tema, desde outros relatórios, reportagens e bancos de informações primárias que reúne dados sobre o comércio.
Dezenas de entrevistas com especialistas e os chamados trend setters (criadores de tendência, em português), pessoas que já vivenciam tais mudanças e foram as primeiras a adotá-las.
Futuro policêntrico
A pesquisa aponta ainda que o trabalho remoto é um vetor de fortalecimento da vizinhança e do senso de comunidade entre a população, potencializando o comércio local e a reorganização da dinâmica na cidade, com o surgimento das chamadas novas centralidades.
Mas, segundo Gisele Brito, mestranda em Planejamento Urbano e pesquisadora do LabCidade, é necessário fazer algumas ponderações sobre as consequências deste futuro "policêntrico”.
Ela exemplifica com o caso da cidade de São Paulo. Nos últimos anos, a região central da capital paulista passa por um processo de intensificação da presença da classe média, de jovens e de iniciativas da economia criativa como um todo.
Ainda assim, continua sendo uma área com grande ocupação popular, com presença da pessoas em situação de rua, catadores de materiais recicláveis e pessoas de baixa renda.
A valorização mercadológica desses espaços e desenvolvimento do comércio local, podem, por exemplo, dar ainda mais força para a pressão de grupos econômicos que defendem a expulsão da população em situação vulnerável desse espaço comum.
:: Periferias e pandemia: desigualdades, resistências e solidariedade ::
A pesquisadora é contundente ao afirmar que a pandemia teve e continuará a ter um efeito diferente para as populações historicamente desassistidas pelo poder público.
“Se as externalidades negativas da pandemia não estão localizadas nesse centro projetados pela e para as classes médias, das economia criativas, irão se assentar em outros lugares. Nas periferias, nos territórios populares e nas favelas. E ao serem projetadas, elas irão gerar expulsão, remoção, desvalorização, criminalização e criminalização dos corpos”, afirma.
Home office para quem?
Já Socorro Leite, integrante do BR Cidades e diretora da organização Habitat para a Humanidade Brasil, acredita que o diagnóstico do aumento do trabalho remoto não considera a maioria da população trabalhadora não teve direito, de fato, ao isolamento social.
“As pessoas, em muitos casos, não puderam parar de se deslocar. O isolamento social não funcionou para população que mora na periferia. Seja porque trabalha em aplicativo, uber ou serviços essenciais e domésticos. Para muitos não foi uma escolha ficar em casa”, diz Leite.
A pesquisa registra que além do home office, as compras online e a redescoberta de novas possibilidades de interação a partir dos meios digitais “vão provocar a necessidade da revisão do planejamento urbano a fim de que as cidades absorvam essas transformações, com mudanças no espaço público, no sistema de transporte e melhores, condições de moradia e saneamento básico”.
O isolamento social não funcionou para população que mora na periferia
Novamente, a realidade vivida pela população vulnerável não sinaliza mudanças positivas para o tão esperado pós pandemia.
Como exemplo, Leite relata que a rede Articulação por Direitos na Pandemia escutou problemas enfrentados por 200 comunidades e grupos como população em situação de rua e catadores de material recicláveis, que diante da crise socioeconômica, devem se aprofundar.
“Em mais de 90% das respostas que tivemos, ou a falta de acesso à água esteve igual ou piorou no período da pandemia. Essa é uma questão bem impactante e que altera a vida das pessoas”, comenta Leite.
Outra grave questão apontada por ela é a da moradia. Com a queda do poder de consumo e de renda, aprofundada pelos altos índices de desemprego, muitas pessoas não conseguiram se manter.
“Quem pagava aluguel, em muitos casos, não vai conseguir pagar. Ou vai se deslocar para uma moradia pior ou vai ocupar outros espaços na cidade. A tendência é ampliar a informalidade e o risco de despejo”, acrescenta, reforçando a importância da campanha Despejo Zero, para que as reintegrações não aconteçam nem durante e nem depois da pandemia.
Em relação às atividades que integram o “novo morar” descrito pelo estudo em meio à crise sanitária, como cozinhar ou o trabalho em si, Gisele Brito reforça que existem experiências completamente distintas.
Ou vai se deslocar para uma moradia pior ou vai ocupar outros espaços na cidade.
Enquanto no centro tais elementos são considerados potencialidades, até mesmo para a economia, em outras regiões são acompanhados da completa precariedade.
“A maioria das pessoas mais pobres cozinha em casa e muitas pessoas de baixa renda trabalham em casa. Que é inclusive uma característica de precarização da vida. Ter uma oficina de costura dentro de casa, um bar na garagem ou um bar em uma Cohab. Isso tem a ver com estigmas. Como a mesma coisa ocorrendo em territórios diferentes, com pessoas de classe social e raça diferentes, um marcador transversal bem importante, é lida como diferente.”
Mobilidade urbana
Em relação ao deslocamento na cidade, a pesquisa menciona que o medo de aglomerações no transporte público fez crescer o chamado “transporte ativo”, como o andar a pé ou de bicicleta.
O documento traz dados da empresa 99, que registrou crescimento de 41% nessa modalidade. Por outro lado, o aumento do uso de carros por aplicativo ou particulares em detrimento do transporte público também foi registrado devido a possibilidade de contágio.
Com a crise, nem todo mundo vai ter condição de pagar transporte
Socorro Leite observa que a pandemia expôs a precariedade do transporte público, local onde muitos trabalhadores foram infectados pelo vírus.
“A grande massa que usa os meios coletivos não tem a opção de home office e vai continuar se deslocando. Mas, com a crise, nem todo mundo vai ter condição de pagar transporte. As pessoas vão se deslocar mais de forma não motorizada em função da redução de renda, do maior empobrecimento em função do impacto da pandemia.”
Além da valorização de espaços públicos como parques e praças, o relatório do A Vida no Centro sinaliza que a demanda por melhorias em calçadas e ciclovias também deve ser uma demanda forte da população.
:: Brasileiros gastam mais com transporte do que alimentação ::
Online em alta
Entre as outras conclusões da pesquisa, está dada a migração do comércio físico para o online, principalmente no setor da alimentação. A compra online de itens de supermercados e pratos de restaurantes inflou com a chegada do novo coronavírus e deve continuar crescendo no pós-pandemia.
Gisele Brito, pesquisadora do LabCidade, observa que o aumento do serviço de delivery significa que mais trabalhadores deverão atuar sem a devida proteção trabalhista e continuarão expostos à covid-19.
“Um dos elementos fundamentais para a disseminação da doença é a circulação para o trabalho. E esse trabalho é um trabalho para quem? É para manter a vida das classes que mantém o capital circulando. Enquanto você pode ficar na sua casa recebendo o delivery, alguém teve que sair, pegar ônibus, se expor ao vírus para preparar essa comida em algum lugar. Não muda as relações de exploração.”
Por outro lado...
Ainda que as tendências não atenuem fatores de desigualdade estruturais, Denize Bacoccina, cofundadora da plataforma A Vida no Centro e responsável pela pesquisa ao lado do jornalista Clayton Melo, vê possibilidades positivas com a mudanças que se anunciam.
Com o trabalho remoto, parcela das pessoas que trabalham mais longe deixarão de se deslocar por horas para chegar ao local de trabalho para executar funções que podem ser feitas de casa. E não apenas a classe média.
Como exemplo, ela cita que empresas de call centers estão em home office. Sem desconsiderar que a função é extremamente precarizada, Bacoccina destaca que com o trabalho remoto, o tempo gasto com deslocamento assim como parte do orçamento comprometido com o transporte público são poupados.
O mesmo pode acontecer com trabalhadores em início de carreira que também moram em bairros residenciais mais afastados de centros empresariais como a Avenida Faria Lima ou outras regiões com maior oferta de emprego como o centro ou Zona Sul. Sem precisar atravessar a cidade, há também um consequente alívio no sistema de transporte público.
Denize Baccocina aponta ainda que embora o relatório desenvolvido pela plataforma A Vida no Centro seja autônomo, as tendências apresentadas podem auxiliar o Poder Público no desenvolvimento de políticas que se adequem ao novo contexto, como a criação de mais praças nos bairros, de mais espaços com internet gratuita e coworkings coletivos.
Edição: Rodrigo Chagas