Onze meses e dez dias. O golpe de novembro de 2019, que prometia romper com a hegemonia do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia, resultou em uma nova vitória eleitoral da esquerda, liderada por Luis Arce e David Choquehuanca. A vantagem em relação aos candidatos de direita mais que dobrou de um ano ao outro, chegando a 25 pontos.
No Legislativo, o MAS também manteve a maioria das cadeiras, apesar da perseguição iniciada em 2019 e das mudanças no Tribunal Supremo Eleitoral (TSE).
Para a militância do MAS e analistas políticos internacionais, não é possível compreender a derrota das forças golpistas sem considerar os erros e crimes cometidos pela direita e a resiliência dos movimentos populares.
Violência e caos
A humilhação em praça pública de Patricia Arce (MAS), então prefeita da cidade de Vinto, foi um dos símbolos do golpe de 2019 e um emblema das perseguições que viriam a seguir.
A onda de violência, que levou o presidente eleito Evo Morales (MAS) e vários companheiros de partido ao exílio, resultou em 33 assassinatos no primeiro mês de golpe. Assim que a senadora Jeanine Áñez assumiu o governo interino, dezenas de políticos e ativistas de esquerda foram presos sem direito a ampla defesa.
Na sede do governo, a Bíblia substituiu a Whipala, tradicional bandeira andina que simboliza a unidade dos povos do continente. No país onde 80% da população é indígena e que viveu sua época de maior crescimento econômico sob comando do MAS, a estratégia não poderia ser mais fracassada.
“Após dez meses de um governo fascista, abusivo, marcado por amedrontamentos psicológicos, que não respeitou os direitos humanos e o Estado de Direito, as pessoas voltaram a acreditar na retomada do desenvolvimento por meio de uma agenda patriótica”, analisa Rafael Gamez, militante do MAS e um dos coordenadores do Grupo de Apoio Estratégico (GAE), criado após o golpe para enfrentar os ataques midiáticos ao partido.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) peça-chave no golpe de 2019, tentou atribuir legitimidade ao governo de Áñez, mas estudos independentes demonstraram que a hipótese de fraude eleitoral não procedia.
A destruição dessa narrativa, somada à violência explícita contra a oposição, comprovada no relatório da Human Rights Watch em setembro, tornou o golpe “indefensável” mesmo para a direita.
Leitura equivocada
Para o historiador Luis Dufrechou, os golpistas tinham vários ingredientes para inaugurar um novo ciclo de hegemonia: o apoio dos presidentes do Brasil, do Chile, dos Estados Unidos e da OEA, a legitimidade discursiva sustentada na “percepção de fraude” que se espalhou pelo país, e a crítica à “perpetuação” do MAS no poder.
“Porém, a direita ‘regional’ em Santa Cruz, mas também a direita tradicional do ocidente do país, em Cochabamba, Sucre, Tarija e La Paz, não souberam ler o país”, analisa.
“O grande erro do novo governo foi não ter sabido ‘normalizar’ o diferente e integrá-lo. Desde o primeiro momento, trataram o MAS como uma mescla de narcotraficantes, corruptos, bêbados, incultos. O gesto simbólico da retirada da Whipala gerou muito mais mal-estar do que poderiam imaginar”, acrescenta.
“Eles pensavam que o MAS ia desaparecer após o golpe, que não era mais uma força representativa e havia se tornado minoritária e tinha apoio de menos de 30% da população”, acrescenta o historiador.
“Mas, conversando com pessoas de classes populares na rua já em março, muitos diziam que haviam votado em outro candidato, por uma promessa de alternância de poder, mas voltariam a votar no MAS. Diziam que, no fim das contas, quem tinha assumido o poder era a velha direita.”
Fragmentação
Se em 2019 a direita estava dividida geograficamente entre o ex-presidente Carlos Mesa, do altiplano, e Óscar Ortiz, das terras baixas de Santa Cruz, qualquer perspectiva de unidade tornou-se impossível após o golpe.
Com uma votação abaixo da expectativa no ano passado, Ortiz tornou-se ministro de Áñez e abriu caminho para a candidatura de Luis Fernando Camacho em Santa Cruz.
Ex-presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e representante da direita radical, Camacho apostou em um discurso pró-Estados Unidos e pró-agronegócio, mas não passou dos 15%, com votação ínfima nas terras altas da Bolívia.
Incapaz de se unir à direita liberal e a Mesa, tamanho o peso dos preconceitos regionais que sustentavam sua chapa, o candidato de Santa Cruz dedicou a maior parte da campanha a atacar a presidenta autodeclarada – em disputa pelo eleitorado fundamentalista.
Gamez resume essa fragmentação como uma derrota do racismo, do ódio e da xenofobia. “Quando entrou o governo golpista, ficou demonstrado que a direita boliviana não tem capacidade de governar um país pluricultural e multiétnico, e que o único governo que pode governar do Ocidente ao Oriente, dos ricos aos pobres, é este governo [do MAS]”, resume.
Oscilando entre a quarta e a quinta posição nas pesquisas de opinião, Áñez desistiu de sua candidatura em setembro e não manifestou apoio à nenhuma chapa.
Ao final, não restou uma força de direita viável eleitoralmente que não houvesse apoiado o golpe. Mesa, que tentou vender a imagem de “moderado”, jamais reconheceu o erro de haver endossado a denúncia de fraude da OEA – mesmo quando ela se mostrou infundada.
Retrocessos
O rompimento com uma política econômica que havia resultado em crescimento e redução da desigualdade era arriscado, mas necessário para quem pretendia encerrar o ciclo do MAS.
O fim dos contratos com empresas alemãs para industrialização do lítio e a escalada dos conflitos causaram desconfiança no mercado internacional e começaram a afetar os negócios da elite empresarial – que, em parte, havia aderido ao golpe.
“O governo [Morales] fez coisas muito boas para os pobres, para tirá-los da pobreza, mas também para os ricos, os empresários, ao abrir mercados de países industrializados para que pudessem importar seus produtos”, lembra Gámez.
Para ele, a pandemia, que atrapalhou a realização do plano econômico de Áñez, “foi como um castigo para a direita, comprovando sua incapacidade de governar.”
Organização popular
Todos os entrevistados ouvidos pelo Brasil de Fato na última semana ressaltam que, de nada adiantariam os erros da direita, sem a capacidade de organização dos trabalhadores bolivianos.
A mão de ferro de Arturo Murillo, ex-ministro de Governo e um dos chefes da repressão, exigiu inteligência para recuar nos momentos necessários e prevenir outros massacres como o de Senkata e Sacaba.
“Com paciência, mas também com resistência. Com consciência, mas também com luta”, definiu Evo Morales em entrevista ao portal Opera Mundi nesta quarta-feira (21).
Outra razão mencionada foi o acerto na escolha da chapa Luis Arce e David Choquehuanca, entendida como a manutenção do legado de Morales e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de erros do passado.
“Com trabalho, humildade e com o apoio do povo boliviano, recuperamos nosso país, por todos e cada um com unidade e coragem”, resumiu Patricia Arce, prefeita que sofreu linchamento público em 2019 e que acaba de ser eleita senadora do Estado Plurinacional.
Edição: Leandro Melito