Entrevista

Médica alerta: “Os números estão diminuindo, mas não saímos de uma fase de perigo” 

O alerta é feito pela reitora da UFCSPA, professora de epidemiologia, cardiologista pediátrica, Lucia Pellanda

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Acho muito importante haver uma mensagem bem clara de que não há normalidade, as aglomerações são muito perigosas e que qualquer saída desnecessária pode sobrecarregar o sistema." - Reprodução / Youtube da UFCSPA

Há pouco mais de sete meses a população gaúcha convive com os impactos da pandemia causada pelo novo coronavírus. O Rio Grande do Sul tem até o momento 224.020 pessoas que já foram infectadas e 5.388 vítimas fatais. Em relação ao mapa de distanciamento o estado possui 18 regiões com bandeira laranja e três em amarelo. As cores das bandeiras servem como balança para a flexibilização. 

Assim como acontece em muitos lugares no país, com a flexibilização da quarentena e uma queda recente nos números de casos e mortes por coronavírus, os gaúchos têm se encontrado em grupo cada vez com mais frequência. E estabeleceram a volta das aulas presencias - na capital, começou na semana passada, e no estado tem início 20 de outubro. 

O Brasil de Fato RS voltou a conversar com a reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), professora de epidemiologia e cardiologista pediátrica, Lucia Pellanda, sobre a situação atual da pandemia no estado. Em junho, quando aconteceu a primeira conversa com a reitora, a preocupação estava no colapso das internações, quando soou o alarme no estado. Quatro meses depois, com uma ocupação mais estável, em que a média se encontra em 71%, Lucia afirma que estamos em uma oscilação em níveis ainda muito altos. “Está melhor que em junho e julho, certamente, os níveis estão diminuindo, os números estão diminuindo, mas não saímos de uma fase de perigo, precisamos continuar a ter muito cuidado.” 

Sobre a retomada das aulas e das atividades, a reitora faz um alerta “aglomeração é uma coisa bastante perigosa, porque essa doença tem uma característica especial que é do super espalhadores. Às vezes um evento pode causar uma cadeia de transmissão que depois vai se multiplicar para outras pessoas”.

Veja abaixo a entrevista completa: 

Brasil de Fato RS - Em junho, quando conversamos pela primeira vez, a senhora falou que naquele momento viveríamos semanas críticas em relação ao vírus. Chegamos ao sétimo mês da pandemia no estado. Em que momento nos encontramos atualmente? Qual o cenário do estado? 

Lucia Pellanda - Quando conversamos em junho eu estava preocupada que fossem semanas críticas porque normalmente nessa semana do ano, a semana epidemiológica, dia 27, por ai, é o período crítico para as internações por infecções respiratórias. E realmente foi um período de bastante internação, foi um pico da pandemia. 

O que acontece é que com o nosso comportamento a gente consegue restringir, melhorar ou piorar essa situação. Acho que houve uma colaboração da população, muita gente ficou em casa. E as pessoas que conseguiram se cuidar seguraram bem, contribuíram muito para salvar vidas. Claro que houve um aumento, uma liberação das atividades, gradual, mas essa liberação com alguns conhecimentos que adquirimos desde março como a questão das máscaras, distanciamento, todos os cuidados, então foi possível fazer isso com calma, com método. 

Naquela época eu estava insistindo muito que era importante interromper a transmissão. O que acontece quando a gente não interrompe a transmissão? Os casos não caem muito rapidamente, a gente fica em um platô. Foi isso que aconteceu, a gente ficou em níveis críticos por muito tempo, isso poderia ser evitado se a gente conseguisse interromper.

De qualquer modo acho que foi importante evitar a sobrecarga do sistema de saúde, o caos. Uma preocupação muito grande é o esgotamento dos profissionais de saúde, porque o leito, o equipamento, o respirador até funcionam, mas as pessoas não conseguem funcionar 24 horas a sete dias por semana, durante meses sem parar. Então está todo mundo cansado. 

No momento a gente já está com uma redução dos níveis, mas estamos naquela fase: abre um pouco, aumenta de novo a internação, abre mais um pouco, aumenta de novo a internação. Então estamos em uma oscilação em níveis ainda muito altos. Está melhor que em junho e julho, certamente, os níveis estão diminuindo, os números estão diminuindo, mas não saímos de uma fase de perigo, precisamos continuar a ter muito cuidado. 

Como a senhora avalia o método das bandeiras do distanciamento controlado usado pelo governo estadual? Serve para pensar saídas a partir da saúde ou da economia?

Eu acho que com o que se sabia em março, o método de distanciamento controlado ajudou muito a evitar o caos no sistema de saúde. O grupo que faz esses cálculos, esses indicadores, é um grupo muito sério que trabalhou muito, se dedicou muito. E acho que os resultados mostram isso. Tivemos uma mortalidade bem menor do que em muitos outros estados, e não tivemos aqueles picos causados por um excesso de mortalidade resultado de um não atendimento, isso não aconteceu. 

Por outro lado, o modelo de distanciamento controlado não interrompe totalmente a transmissão. Ele faz com que a gente evite os óbitos por falta de atendimento. Mas a gente ainda gostaria, se fosse possível, avançar um pouco mais nisso e não ter necessidade de níveis elevados de internação. 

Então, eu acho que o modelo de distanciamento controlado é muito bom, no entanto ele precisa de mais coisas para irem sendo acrescentadas para que possa funcionar. A principal coisa, e está sendo feito um esforço para isso, é a questão de testagem e rastreamento de contatos. É importante, não adianta simplesmente ir abrindo sem que seja possível rastrear cada caso e isolar todos os seus contatos. 

A senhora faz parte do Comitê Científico de apoio ao enfrentamento da pandemia, em uma live pontuou que não é possível o relaxamento do distanciamento físico e a retomada das aulas. Como a senhora vê a retomada das aulas? E também sobre a retomada de atividades comerciais como bares?


Sobre o retorno das aulas Lucia alerta que sempre que aconteceu isso, houve um risco muito grande de contaminação e houve necessidade de fechar muitas escolas novamente Foto: Tácio Melo/Secom

Sobre a retomada das aulas o que eu disse foi que a gente fez uma revisão bastante grande da literatura e nós não encontramos nenhuma experiência de sucesso de aulas voltando com taxas de transmissão altas. Sempre que aconteceu isso houve um risco muito grande de contaminação e houve necessidade de fechar muitas escolas novamente. Então tem que se preparar para abrir e fechar novamente. 

Segunda coisa é que tem que ter algumas condições para que se volte. Uma delas é que eu tinha citado que é a capacidade de testar e rastrear todos os contatos, capacidade de identificar de onde está vindo a infecção. Se isso não for possível não é possível voltar com nenhuma atividade de aglomeração. 

Então aglomeração é uma coisa bastante perigosa, porque essa doença tem uma característica especial que é do super espalhadores. Às vezes um evento pode causar uma cadeia de transmissão, que depois vai se multiplicar para outras pessoas. Cada vez que tem um evento aquele número de pessoas que está ali é multiplicado por todos os seus contatos. Então às vezes um surto desses pode, em uma situação que a gente já está em um nível elevado de internações, representar um esgotamento do sistema, por isso que eu acho que tem que ter um extremo cuidado. 

Agora especificamente em relação às escolas a gente sabe que são muitas variáveis diferentes. O Comitê falou isso, ele fez essa revisão e disse, não temos essas experiências. Nas cidades onde já não tem nenhum caso há muito tempo, ou não teve casos nas últimas semanas, não tem internação, nessas cidades pode ser diferente. Essa foi a posição do comitê. De qualquer maneira, é preciso sempre estar preparado para manter o distanciamento, manter os cuidados, manter máscara, todas essas situações, a limpeza, todos os protocolos, porque qualquer volta que não seja nas condições ideais pode ser um grande risco. 

A gente tem que considerar não só os riscos das crianças ficarem em casa porque a escola é um lugar muito importante para as crianças se a gente reconhece essa importância, mas por outro lado pensar na exposição das crianças, das famílias. No nosso país a gente tem muitos domicílios que são de várias gerações, é bem diferente de outros países e o risco para as pessoas que trabalham nas escolas, professoras, professores, funcionários das escolas.   

Que impactos essa retomada pode trazer? Estamos no momento do relaxamento ou próximos de um “novo” normal?

Eu acho que estamos em um momento que não é novo normal, o que a gente tinha antes não sei se era normal, essa desconexão entre a minha saúde e a saúde do outro, entre as variáveis de conexão social, dos determinantes sociais da saúde, do processo da saúde e de doença. Então acho que realmente a gente vai ter que pensar nisso, quanto a nossa saúde está interligada com a de todos os outros, com uma sociedade que dê conta, que cuide de todos os seus membros e também com a saúde do planeta. São reflexões que a gente vai ter que levar para esse novo período, que eu espero que seja um avanço em relação ao normal de antes. 

O que a gente tinha antes não sei se era normal, essa desconexão entre a minha saúde e a saúde do outro

No Rio Grande do Sul não acho que estamos em uma fase de recuperação ou retomada, estamos ainda na primeira onda, ela está descendendo nas últimas semanas, mas com muitas liberações, com aglomerações que temos visto. Tem uma oscilação que ainda é difícil de prever. Então não acho que saímos da primeira onda ainda.

Tem se falado em uma segunda onda, na Europa por exemplo ela já chegou, como aponta a reportagem do El País em que se fala do aceleramento em alguns países, como Espanha. “Com a curva em alta, o país estava claramente em uma segunda onda, diferente da primeira, mas também preocupante. Foi uma questão de tempo até que o restante da Europa sucumbisse a esse segundo ataque do coronavírus. França, Reino Unido, Alemanha e República Tcheca estão registrando números recorde. A Itália prepara novas medidas restritivas ao ultrapassar cinco mil infecções diárias pela primeira vez.”

Pensando nesse contexto para o que passamos no estado, a primeira onda já passou? Estamos já próximo de uma segunda?

Sobre a Europa estar vivendo uma segunda onda era o que se esperava com reaberturas, que iria aumentar o número de casos. Têm alguns países que estão enfrentando melhor novamente, outros menos. Os países que enfrentam melhor são aqueles que têm uma mensagem muito clara, que se baseiam na ciência e mantém os cuidados de distanciamento. 

No Rio Grande do Sul, não acho que estamos em uma fase de recuperação ou retomada, estamos ainda na primeira onda, ela está descendendo nas últimas semanas, mas com muitas liberações, com aglomerações que temos visto. Tem uma oscilação que ainda é difícil de prever. Então não acho que saímos da primeira onda ainda.  

É de conhecimento da comunidade científica e confirmado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que o novo coronavírus pode ser transmitido não só por gotículas expelidas durante a tosse ou os espirros, mas também por aerossóis, partículas que ficam suspensas no ar. Quando escutamos governos falando que todos os protocolos estão sendo cumpridos para liberar atividades em locais fechados, esse dado tão relevante parece passar batido pelas decisões. Qual sua posição sobre isso?

Sobre os lugares fechados realmente é bastante importante, esse foi um dos aprendizados que a gente teve, questão da disseminação não só por gotícula, mas também por aerossol. A gente tem que imaginar como se fosse glitter, purpurina, ou até uma pessoa fumando, por exemplo, como é que se espalha aquela fumaça. Então sempre preferir ambientes bem ventilados, deixar sempre as janelas abertas, se tiver que ficar em algum lugar ficar perto da janela, ou perto da porta, e melhor ainda ao ar livre. 

A gente entende que as pessoas estão muito cansadas de ficar em casa. Está praticamente todo mundo trabalhando. Quem pode trabalhar de casa - os aposentados, estudantes, quem ainda pode ficar em casa deve ficar em casa, mas mesmo quem está trabalhando, manter todos os cuidados, distanciamento, máscara, lavar as mãos frequentemente, não tocar no rosto, sempre procurar os ambientes bem ventilados. E quando na volta das suas atividades ficar em casa no máximo de tempo possível porque o risco vai aumentando com o tempo de exposição. 

Aglomeração é uma coisa que a gente deve evitar a todo custo, aglomeração em bares, aglomeração mesmo ao ar livre se for uma aglomeração de muita gente sem máscara, comendo ou bebendo, vai aumentando o risco. Tem aquela tabela de risco bem interessante que foi feita por alguns pesquisadores que mostra assim: quanto mais tempo de exposição, quanto mais proximidade, quanto mais gente, quanto mais fechado o ambiente, enquanto menos gente usando máscara e mantendo os cuidados, maior o risco de disseminação. 


Tabela de exposição de riscos / BBC

Então acho que manter esses cuidados e aos pouquinhos saber que as pessoas podem ter algumas flexibilizações, com cuidado, porque a gente tem que pensar na atividade física, importante fazer atividade física ao ar livre, de preferência em locais não muito cheios, tem que pensar na questão dos afetos, as pessoas estão muito cansadas, apesar de que eu acho que a conexão pode se estabelecer sem a presença física, mas quando a gente precisa ter essa presença física que seja entre poucas pessoas e mantendo os cuidados.

Que lições já podemos tirar da pandemia da covid-19 no campo da saúde?

A importância da interconexão de todos nós, da minha saúde ser diretamente influenciada pela saúde de todos. A importância da gente avaliar a questão das desigualdades em saúde, o acesso à saúde. A importância do nosso Sistema Único de Saúde que foi fundamental para esse enfrentamento, é fundamental.

Nosso Sistema Único de Saúde que foi fundamental para esse enfrentamento, é fundamental

E que deve ser cada vez mais, um investimento a longo prazo na saúde, no nosso Sistema de Saúde, em educação é fundamental e também a conexão com a saúde do ambiente para que a gente evite novas pandemias. A importância do cuidado com o outro e consigo mesmo, principalmente uma importância de uma cultura de cuidado. 

A importância de uma mensagem muito clara para a população sobre esses cuidados sobre a necessidade de cuidar do outro. Eu acho que sempre há uma escolha, eu escolho usar a máscara para proteger o outro, eu não me sinto como sendo uma imposição, eu escolho me vacinar para proteger o outro, eu não sinto como sendo uma imposição. Se a gente mudar a narrativa para ser uma escolha para que todo mundo se cuide, acho que é diferente do que uma imposição. 

Talvez a gente vá ter que mudar muitas coisas na nossa forma de ver a saúde, saúde também é o conhecimento sobre a saúde, é poder fazer escolhas conscientes e realmente ter um conhecimento que faça com que a gente possa se prevenir contra desinformação, notícias falsas. A ciência tem esse papel muito importante de conversar mais com a sociedade. 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko